por Ignácio Cano*
Nos últimos tempos, a prefeitura do Rio de Janeiro vem desenvolvendo campanhas denominadas de "choque de ordem", executadas pela recémcriada Secretaria Especial da Ordem Pública, com o objetivo declarado de restabelecer a ordem urbana. Essas campanhas parecem contar com a aprovação de certos setores da sociedade e com o apoio explícito de importantes meios de comunicação.
As raízes da demanda social pela instauração de uma ordem urbana são diversas e, em boa parte, legítimas.
A sujeira e o descaso com a infraestrutura urbana, o caos na utilização do espaço, um arcabouço normativo frequentemente ignorado até pelas próprias autoridades, a sensação de ameaça representada por flanelinhas que se apropriam das ruas, intimidando os clientes. Esses e outros elementos conspiram para estimular a exigência de uma nova ordem urbana.
De forma geral, o espaço público está submetido a um uso concorrente por parte de diversos grupos sociais que precisa, necessariamente, ser regulado. O problema está na percepção de que essa ordem está sendo entronizada preferencialmente a favor de alguns grupos e, sobretudo, contra outros. Neste sentido, a prefeitura do Rio parece continuar uma longa tradição de hostilidade a grupos marginalizados, desde os capoeiras no século XIX a prostitutas e mendigos em tempos mais recentes. Se as administrações do anterior prefeito encarnaram sua fúria normativa contra os camelôs, a população de rua parece ter se tornado o alvo da vez.
Inclusive, gerou-se entre muitos cidadãos a expectativa de que basta ligar para a prefeitura para que moradores de rua sejam retirados de um local, como se fossem entulho, para alvoroço de todos aqueles para quem o problema real não é a pobreza, mas apenas o incômodo de ter que conviver com ela de perto. De fato, a retirada da população de rua parece ser realizada com um caráter coativo, por exemplo apreendendo os pertences das pessoas e obrigando-as a sair. Um sintoma desse espírito autoritário é o fato de que policiais são enviados para um recolhimento que deveria ser feito por assistentes sociais. A foto publicada na página 10 do GLOBO (9 de abril), em que um policial aponta sua arma para um menino no chão, não precisa de comentários. Posteriormente, como era de se esperar, mendigos e moradores de rua voltam dos abrigos distantes a que são levados, reiniciando uma caçada cujo único resultado tangível é permitir às autoridades se apresentarem como cruzados da ordem.
É preciso reconhecer que o problema da população de rua não é simples de resolver e acontece também em sociedades com renda per capita substancialmente superior à nossa. Mas qualquer solução deverá ser encontrada em conjunto com os moradores de rua e não contra eles. A tentativa de retirada forçosa dessas pessoas é, de um lado, injusta e, de outro, inócua, pois elas voltarão, a não ser que lhes seja oferecida uma alternativa mais atraente. Um dos melhores exemplos de degradação urbana é o estado de muitos dos túneis da cidade, fétidos e impraticáveis para os pedestres. Possíveis medidas incluiriam, por exemplo, a criação de banheiros públicos gratuitos na entrada e a negociação com os moradores de rua para que usem apenas um lado e liberem o outro para os pedestres. Mas isso implicaria reconhecer a realidade em vez de oscilar entre a negação e o autoritarismo. A nova ordem urbana a ser instaurada não precisa de choque, mas de critério. Em primeiro lugar, deve levar em consideração as dificuldades práticas que muitos cidadãos têm para cumprir as normas, como revela o flagrante recorrente de carros de autoridades estacionados em fila dupla. Em segundo lugar, é preciso que a ordem seja estabelecida de forma democrática e não contra os mais fracos. Uma coisa é perseguir quem lucra vendendo produtos sem condições sanitárias ou construindo prédios em solo público com um fim comercial, medidas a serem aplaudidas, outra muito diferente é enxotar os pobres das áreas nobres, tratandoos como se fossem, eles próprios, o problema.
*Ignácio Cano é professor do Departamento de Ciências Sociais da UERJ
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