terça-feira, 26 de abril de 2011

Salve o Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública (mas salve mesmo...)


Por Miguel Baldez

Dezenove de abril deste 2011, importante dia de saudação e homenagem à vida desse povo pobre do Rio de Janeiro, aquela pobreza institucionalizada pela Constituição Federal no princípio objetivo (artigo 3º) nela incluído em cumprimento ao princípio fundamental do respeito à dignidade do homem e da mulher (artigo 1º), falo da ordem constitucional de erradicação da pobreza e, como ordem, anotado no programa de governo pela presidenta Dilma Roussef, mas muito mal compreendida por seus parceiros do Rio, principalmente o Prefeito Eduardo Paes e seu braço armado, o governador Sergio Cabral com o aparato militar que a competência federativa lhe reservou.

Entendam senhores: a presidenta não quis dizer que a erradicação da pobreza se faria através de variada forma de violência, oficial ou não, como mandados judiciais, ações policiais e terrorismo municipal. Já se disse em outro escrito mas não custa repetir, até à exaustão se for preciso, que não é e nem será por meios cirúrgicos que a senhora presidenta pretende erradicar a pobreza mas sim por mecanismos de inclusão social.

Pois naquele importante dia 19 de abril deu-se na prática aquilo que Ernst Bloch (O Princípio Esperança), citado por Leandro Konder (O Manifesto Comunista 150 anos depois) chamou “consciência antecipadora” da utopia. E esta festa democrática aconteceu por iniciativa do deputado Marcelo Freixo, que, em honra do grupo de terras da Defensoria Pública, criou condições institucionais para abrir a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro às comunidades excluídas e perseguidas da cidade, mostrando a Alerj, de fato, o que não é muito comum, como casa do povo.

A sessão solene não foi, por isso, uma solitária solenidade burocrática. Na verdade, a outorga da medalha Tiradentes ao Núcleo, foi fruto de importante mobilização popular e ao deputado Freixo, com solidária sensibilidade política, coube formalizar na Alerj a vontade daquela gente segura de si e organizada para resistir às agressões do poder.

Não foi, apenas entretanto afirma, o Núcleo de Terras o único grupo democrático honrado com outorga da medalha. Com ele também foram homenageados os Magistrados Fluminenses para a Democracia e os Juízes Democratas de São Paulo, que juntamente com os Juízes do Rio Grande do Sul, vêm iluminando com as luzes da democracia e vigorosa ação libertária e envelhecido direito brasileiro.

A nota triste da noite foi a incompreensível intervenção da Defensoria Geral no ato, pois sua representante, ao invés de ressaltar a importância de seus companheiros do Núcleo, acabou invisibilizando-os em generalização naquele momento certamente inoportuna. Pareceu que o trabalho dos defensores do Núcleo, afinal, não é tão importante assim. E é deveras muito importante, eu diria imprescindível, pois chega a beirar o heroísmo a luta contra o reacionarismo racista (70% dos 10% mais pobres da cidade são negros) de um sistema formado pelos principais comandos jurídicos e policiais do Rio de Janeiro, incluindo Município e Estado, e, a distância ou com apoio financeiro ou pela omissão diante da violência, a União Federal, e, mais à distância, mas não tão distante assim, com seus bolsos recheados e ávidos olhares voluptuosos, a especulação imobiliária, grande beneficiária de UPPs e das remoções, essas uma aberrante ilegalidade. Deu pena a vaia com que foi recebida a nomeação de um novo coordenador para o núcleo de terras, pena do jovem supostamente agraciado, cujo embaraço ficou muito claro, e se isto lhe servir de consolo veja que a vaia, tecnicamente, não foi para ele e sim para a natureza do ato anunciado, evidente intervenção que o deixou na incômoda e desagradável condição de interventor, prática inaceitável de fascismo societal, como bem diz e registra em vários estudos Boaventura de Sousa Santos.

A intervenção é um sinal. Mostra o risco da perda ou, no mínimo, do enfraquecimento do Núcleo de Terras, com sua necessária composição atual, cujos componentes, espera-se, que o senhor Defensor Geral mantenha, até pela significação histórica desse grupo, síntese perfeita da dialética democrática entre a investidura oficial e a práxis consagrada pela unânime aprovação popular.

PS: depois de redigido o texto, chegou-me a notícia de que os componentes do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública, não resistindo às pressões internas, exoneraram-se de suas respectivas funções, e, provavelmente como punição, foram lotados, cada um de per si, em municípios diferentes e distantes uns dos outros. Cabe, agora, à Assembléia Legislativa e aos movimentos que participaram do grande ato do dia 19 de abril exigirem do Defensor Geral a recomposição do Núcleo com o retorno de seus integrantes, pois não se pode admitir que a Assembléia Legislativa e os movimentos populares sejam punidos por participarem de ato democrático promovido na própria assembléia por iniciativa e a convite de um deputado. É a consumação da prática fascista ensaiada e anunciada com a intervenção.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Mandato do Vereador Leonardo Giordano reúne associações LGBTT e propõe Ação Civil Pública contra Jair Bolsonaro



O Grupo Diversidade Niterói, o Grupo Cabo Free de Conscientização Homossexual e combate à Homofobia e o Grupo Arco-Íris, por iniciativa do Vereador por Niterói Leonardo Giordano (PT), propuseram nesta segunda-feira (18/04) uma ação civil pública contra o Deputado Federal Jair Bolsonaro, junto à 25ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

A ação tem como objeto as recentes declarações homofóbicas e racistas proferidas pelo Deputado Federal no programa CQC e na imprensa, e busca a reparação por danos morais coletivos em valor não inferior a 500 mil reais, a ser destinado para o Fundo de Direitos Difusos (FDD).

O Vereador e as associações pleiteiam também que o Deputado faça um pronunciamento em rede nacional com urgência, afirmando o seu respeito às minorias sexuais, como forma de desestimular a violência contra a comunidade LGBTT e as manifestações neonazistas, que aumentaram após as suas declarações.

Segundo a advogada Clara Silveira Belato, assessora jurídica do mandato, o Brasil, apesar de ter uma Constituição avançada, ainda não conseguiu implementar políticas eficazes para educar, dialogar e superar os preconceitos contra a comunidade LGBTT. Ela afirmou ainda que “nosso país é campeão no número de assassinatos por homofobia, e não podemos permitir que esse comportamento seja chancelado ou até mesmo estimulado por um Deputado Federal. Depois das declarações de Bolsonaro, houve até manifestação neonazista, com tentativa de agressão aos gays, que só não ocorreu por intervenção da polícia. O Poder Judiciário pode e deve interferir nesses casos, para garantir o respeito a dignidade humana e o direito de viver numa sociedade democrática e livre de preconceitos.”

De acordo com dados da ONG GGB (Grupo Gay Bahia), que contabiliza crimes de homofobia a partir de registros na imprensa e de informações enviadas a entidade, o número de homicídios contra gays, lésbicas e travestis aumentou 31 % em 2010 em relação ao ano anterior. Isso significa que, em média um homossexual foi morto no País a cada um dia e meio. Nos primeiros três meses de 2011 já foram documentados 65 homicídios contra homossexuais.



quinta-feira, 14 de abril de 2011

Uruguai anula lei que anistiava crimes da ditadura

O Senado uruguaio aprovou o projeto interpretativo que anula a Lei da Caducidade. Durante 25 anos, essa norma impediu que fossem julgados os responsáveis por sequestros, torturas, desaparecimentos e assassinatos cometidos durante a ditadura que governou o país entre 1973 e 1985. No dia 4 de maio, projeto deve ser ratificado em votação na Câmara de Deputados. Corte Interamericana considera a Lei da Caducidade como um obstáculo para a justiça no Uruguai.

 

 

 

O Senado uruguaio aprovou na noite desta terça-feira o projeto interpretativo que anula a Lei da Caducidade. Durante 25 anos, essa norma impediu que fossem julgados os responsáveis por sequestros, torturas, desaparecimentos e assassinatos cometidos durante a ditadura que governou o país entre 1973 e 1985. Os opositores Partido Nacional e Partido Colorado votaram contra a iniciativa promovida pela Frente Ampla, que governa o país. Mas também houve discrepâncias dentro das fileiras dessa coalizão de centroesquerda. O histórico militante tupamaro Eleuterio Fernández Huidobro submeteu-se à disciplina partidária e votou a favor do projeto, mas anunciou que renunciava à sua cadeira.

A sessão começou por volta das 10 horas da manhã e se estendeu até tarde da noite, quando a Frente Ampla fez valer seus 16 votos frente aos quinze da oposição. Independentemente de sua cor partidária, a maioria dos senadores tinha algo a dizer a respeito da Lei de Caducidade que, desde 1986, impede que os repressores uruguaios sejam julgados. Há tempo que a lei ocupa o centro da discussão política no Uruguai. Um debate acalorado que divide aqueles que se manifestam a favor de extirpá-la do ordenamento jurídico do país e aqueles que querem mantê-la, alegando que foi ratificada pela cidadania em dois plebiscitos.

O Senado respirou esse clima. Pelo governo, coube ao senador Oscar López Goldaracena, um conhecido jurista e ativista dos direitos humanos, quebrar o gelo. “Esta Câmara tem a possibilidade de começar a corrigir o erro político de aprovar uma lei que ampara a impunidade de criminosos de lesa humanidade, removendo a carga que pesa sobre a sociedade uruguaia”, disse o advogado que representa o Movimento Independente pelos Direitos Humanos, na Frente Ampla. López Goldaracena observou que era importante eliminar os efeitos da Lei de Caducidade para evitar que as atrocidades perpetradas pelos militares voltem a se repetir.

Mas nem tudo foi uma postura uniforme dentro da coalizão de centroesquerda. Desde que foi aprovado na Câmara de Deputados, em outubro de 2010, o projeto estava paralisado no Senado, onde três senadores governistas se negavam a acompanhar a iniciativa de seu bloco. Em março, a Frente Ampla conseguiu destravar a situação e alcançou os votos necessários para aprovar o projeto. No entanto, os senadores dissidentes seguiram expressando sua divergência. O ex-vice-presidente Rodolfo Nin Novoa deixou da sessão e fez entrar seu suplente que votou a favor da Frente Ampla. O legislador frenteamplista Jorge Saravia se manteve firme em sua postura de não apoiar a iniciativa para interpretar a Lei de Caducidade e denunciou que se tratava de um “disparate jurídico”.

Mas a novidade do dia ficou por conta do ex-tupamaro Fernández Huidobro, que renunciou a sua cadeira porque teve que obedecer a determinação de votar a favor da iniciativa. “Diz-se com razão, dentro de nossa força política, que é preciso acatar a vontade da maioria. Acreditamos nisso e por isso estamos acatando a determinação e votaremos pela disciplina. Mas o povo também foi maioria duas vezes”, disparou, referindo-se aos plebiscitos de 1989 e de 2009, quando a maioria da sociedade se negou a anular a Lei de Caducidade. O presidente José Mujica foi à noite até o escritório de Huidobro e expressou sua solidariedade.

Pelo Partido Nacional, o primeiro a fazer uso da palavra para protestar contra a iniciativa governista foi o senador Francisco Gallinal. “Longe de ser interpretativa, esta lei é “inovativa”, reclamou. “Não votamos nela porque há dois pronunciamentos populares neste sentido. Esse é um argumento formal que, na nossa avaliação, é muito importante”, disse Gallinal ao jornal Página/12. “Entendemos que esta proposta traz grandes problemas para a sociedade, já que significa transportar toda a questão ao Poder Judiciário”, acrescentou. Gallinal invocou novamente o Pacto do Clube Naval, de 1984, quando as principais forças políticas e os militares no poder negociaram a abertura democrática. “Este projeto interpretativo rompe o equilíbrio que permitiu a solução institucional de 1985, quando duas anistias foram aprovadas: uma para os militares e outra para os presos políticos tupamaros”, assinalou o político conservador.

Os organismos de direitos humanos, as organizações estudantis e de trabalhadores fizeram pouco caso dos argumentos dos partidos tradicionais. Desde as galerias do Senado, alguns seguiram de perto a movimentação dos senadores. Outros ficaram do lado de fora escutando o debate transmitido por alto falantes. Todos concordaram que o dia de ontem foi um dia para celebrar. Mas sabem que ainda falta caminho percorrer até que a Câmara de Deputados ratifique, no dia 4 de maio, o projeto aprovado ontem pelos senadores.

“O Uruguai vai se colocar em uma boa posição no que diz respeito à proteção dos direitos humanos frente à comunidade internacional. Após quase meio século de existência desta lei, com a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo caso Gelman e com esta resolução aprovada hoje, estão nos dando a razão. Isso também demonstra ao movimento popular que a perseverança e a luta da sociedade terminam dando resultados”, ressaltou Raúl Olivera, da central operária PIT CNT. O Serviço de Paz e Justiça (Serpaj) foi mais cauteloso na hora das celebrações. “Nunca apeamos o cavalo da anulação. Não conseguimos. Certamente que apoiamos e acreditamos que é preciso fazer todo o necessário para acabar com a impunidade. O Estado não pode seguir sem dar respostas ao que disse a Corte Interamericana, que apontou a Lei de Caducidade como um obstáculo para a Justiça. Para nós, não é a melhor saída, mas é preciso seguir avançando no Nunca Mais e para que estas coisas sejam solucionadas”, afirmou Ana Aguerre.

Já a Associação de Ex-Presos Políticos do Uruguai definiu o dia de ontem como uma jornada de emoções. “Para nós, a anulação da Lei de Caducidade é uma das razões fundamentais de nossa luta. Estamos exigindo isso há muito tempo para que se investigue o que ocorreu com nossos companheiros desaparecidos e para que os torturadores sejam julgados, abrindo-se, assim, o caminho para conhecer a verdade”, disse Julio Martínez.


Tradução: Katarina Peixoto
Fotos: Público presente nas galerias do Senado uruguaio aplaude aprovação do projeto (Foto Victória Rodriguez/La Diaria)
http://cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17684 

segunda-feira, 11 de abril de 2011

A PREFEITURA NO BANCO DOS RÉUS

Por Diogo Flora


Mega eventos e reforma urbana


A cidade do Rio de Janeiro está mudando e essa guinada de rumos se intensificou desde que foi escolhida para sediar os mega eventos internacionais, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Mega eventos porque exigem da cidade uma sofisticada infra-estrutura urbana, com transporte, segurança e todos os serviços públicos funcionando bem, além, é claro, de representar uma expansão sem precedentes para os negócios e as empresas, nacionais e internacionais. O Rio será, em muito breve, um canteiro de obras colossal. Em contrapartida, são milhares os turistas que nos visitarão, a cidade está se tornando internacionalmente conhecida e vultosos são os capitais que estão sendo investidos. Por isso, as transformações serão extensas, mexendo profundamente no nosso cotidiano.


Mas nem tudo são flores nesse mega mundo. Não erram aqueles que afirmam que esse período deixará a cidade reformada. Mas tão importante quanto essa constatação, só que muito menos popular para os governos e os meios de comunicação, é outra: os mega eventos representarão uma “faxina social” (ou chacina, como seria mais correto)! Sob o argumento da reurbanização do Rio de Janeiro, que não é ruim por si só, a Prefeitura está empreendendo o maior bota-abaixo desde que Pereira Passos, no início do século passado, transformou o Rio na Paris dos trópicos. Esqueceu-se o antigo Prefeito, assim como o atual, que nós temos muito mais pobres que a França. E, da mesma forma que naquela época se iniciou um brutal processo de favelização, agora o processo se amplia, mas para longe dos nossos olhos.


Se os olhos não vêem a miséria, se o nariz não sente o fedor e se nenhum pivete incomoda pedindo uma moeda no sinal, então, como num passe de mágica, tornamo-nos um país de primeiro mundo, depois de séculos na fila. Mas, nos limites da cidade, em toda a zona de conurbação urbana e principalmente na baixada fluminense, as favelas crescem. E crescem em um ritmo jamais visto. O contingente oriundo das remoções forçadas, da especulação imobiliária, das desapropriações não indenizadas e dos despejos ilegais empreendidos pela Prefeitura só aumentam a vazão desse ritmo migratório. Para aqueles que gostam de ler, Planeta Favela, de Mike Davis, faz um assustador relato dessa realidade.



Um pouco de direito: princípio da não remoção


Alguns podem achar que estou pegando pesado demais quando falo em remoção forçada e despejo ilegal. Afinal de contas, o fato é que seremos sede de importantes mega eventos e precisamos nos preparar. Até aí, tudo certo. O problema é que não pode ser a qualquer custo. Não estamos em nenhuma ditadura e nossos representantes são eleitos para nos proporcionarem uma boa vida, digna da nossa condição humana. Quando falamos em remoção e despejo, estamos falando de famílias que agora estão na rua. A própria Constituição, lei maior do país, em seu artigo 6º coloca a moradia no mesmo nível de outros direitos sociais, como a segurança, a educação e a saúde. Ter um lar é um direito fundamental e questão de justiça social.


Poderíamos apelar para o Direito Internacional e transcrever diversos tratados ratificados pelo Brasil. Ou ainda outras legislações estaduais e especiais sobre o tema. Mas vou me concentrar na Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, cuja função é reger a organização e funções deste ente federativo. De início, é importante tomar ciência de seu preâmbulo, para não a julgarmos equivocadamente: Nós, representantes do povo carioca, (...) dispostos a assegurar à população do Município a fruição dos direitos fundamentais da pessoa humana e o acesso à igualdade, à justiça social, ao desenvolvimento e ao bem-estar, numa sociedade solidária, democrática, policultural, pluriétnica, sem preconceitos nem discriminação (...)”


O Poder Executivo, a quem cabe respeitar e fazer cumprir as determinações legais, é o primeiro a ignorá-las sob os argumentos de que: é necessário se preparar, é importante compreender, temos que juntar forças para não passar vergonha, e mais isso, e mais aquilo. Na prática, o trator passa por cima. O trator passa por cima dos preceitos legais e a Guarda Municipal conta os corpos, enquanto a polícia do Estado impede qualquer um de tentar se defender frente à barbaridade. De um ano para cá, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, através de seu núcleo especializado para questões fundiárias (Núcleo de Terras e Habitação) constatou que os atendimentos aumentaram 83%, totalizando quase 100 mil famílias. Deixo ao leitor a álgebra necessária para chegar aos números finais, considerando a formação padrão de uma família pobre brasileira. Apenas para a construção das vias rodoviárias que ligarão os locais dos jogos, como a Transoeste e a Transcarioca, já eram, até dezembro do ano passado, 10.800 famílias afetadas. E o número vai crescer, está crescendo.


O procedimento da municipalidade é previsível, pois tem se repetido sempre. Chegam marcando as casas, como se ali não morasse gente. Junto às iniciais da Secretaria Municipal de Habitação (SMH), transformam uma família em um número. Emitem uma notificação para desocupação dos imóveis com prazo, não raro, de 24 horas – há casos onde consta prazo de desocupação de zero hora. Voltam no dia seguinte, com uma tropa de guardas do choque de ordem e policiais militares armados com fuzis. Colocam os móveis daqueles trabalhadores pobres, que muitas vezes demoraram anos para serem comprados, na rua. Passam o trator onde conseguem e, onde não é possível, colocam homens com marretas para quebrar as paredes. Na linguagem deles próprios, descaracterizam o local como moradia, para que aqueles pobres “vagabundos” não voltem.


Aqui vai mais um trecho importante da Lei Orgânica do Município: Art. 422 § 1º As funções sociais da Cidade compreendem o direito da população a moradia, transporte público, saneamento básico, água potável, serviços de limpeza urbana, drenagem das vias de circulação, energia elétrica, gás canalizado, abastecimento, iluminação pública, saúde, educação, cultura, creche, lazer, contenção de encostas, segurança e preservação, proteção e recuperação do patrimônio ambiental e cultural.”


O Poder Público pode sim remover as pessoas de um determinado lugar para construir o que quer que seja para o bem de toda a população, mas há princípios a serem observados. Os moradores devem ser indenizados em um processo de “Desapropiação da Posse”. Pode parecer estranho, mas a posse possui valor econômico e deve ser indenizada. Assim nos diz a doutrina e a jurisprudência dos nossos Tribunais, inclusive em Agravo de Instrumento Nº 1.261.328 – BA, cujo relator foi o ex-Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luiz Fux, o mais novo Ministro do STF, corte suprema da República. Outras opções são o reassentamento em lugar próximo ou a compra assistida de outro imóvel. Mas em todos os casos, o que observamos é que isso não é uma preocupação que oriente as condutas dos agentes públicos. Primeiro, eles derrubam e, depois, acionados na justiça, são obrigados a reparar os danos, embora isso não seja mais possível. Assim, começa o pesadelo dos antigos moradores com alugueres sociais injustos, insuficientes e que atrasam constantemente, ou conjuntos habitacionais erguidos às pressas, com infiltrações, sem rede de saneamento, escola, hospital, creche ou qualquer outro equipamento urbano.



E então, o que fazer?


Em assunto de direito à cidade, especialmente no que tange a moradia, os movimentos sociais lutam por uma reforma urbana em outros parâmetros. O Rio de Janeiro cresceu durante séculos sem um projeto de organização e uso do solo e, em uma metrópole, isso leva ao caos urbano, social e ambiental. Precisamos de um projeto que não seja baseado em interesses particulares de grandes empresários e especuladores. A cidade que queremos deve ter como meta garantir a satisfação das necessidades das pessoas, principalmente das classes trabalhadoras, que hoje vivem em uma “Cidade de Exceção”, onde os direitos são restritos pela força e pela ignorância. Onde, muitas vezes, o controle populacional é realizado através das armas, como nas comunidades com varejo armado da droga; nas comunidades com UPP’s, onde os fuzis estão em tão violentas mãos; e nas comunidades que vivem sob o terror da milícia.


É contra isso que deve agir o Direito. E um dos instrumentos para essa ação é a Lei, conquista histórica que não foi escrita por piedade ou por acaso. Os mega eventos devem significar bem estar geral e não enriquecimento de poucos. Contra a segregação em curso militam os movimentos organizados, respaldados pela Constituição, pelos tratados internacionais e, no nosso caso, pela Lei Orgânica. Aceitar viver sob os brados da civilização em barbárie atenta contra o Estado Democrático de Direito. Temos a história como exemplo e devemos aprender com exemplos similares em outras cidades e países que também foram sediaram os jogos.



Os profissionais do Direito e todos aqueles comprometidos com a justiça além do direito têm o dever ético e a responsabilidade profissional de assegurar o cumprimento das garantias legais, o avanço da legislação social e a responsabilização pelos ilícitos cometidos pela Prefeitura durante esse novo bota-abaixo. Regredir nessa questão é abrir espaço para uma cidade cuja população vai ser subjulgada pela exceção permanente, pelo medo e, principalmente, pelo capital.


* Diogo Flora é estudante de Direito da UERJ, militante do movimento "Direito Para Quem?" e estagiário do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública/RJ.