segunda-feira, 11 de abril de 2011

A PREFEITURA NO BANCO DOS RÉUS

Por Diogo Flora


Mega eventos e reforma urbana


A cidade do Rio de Janeiro está mudando e essa guinada de rumos se intensificou desde que foi escolhida para sediar os mega eventos internacionais, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Mega eventos porque exigem da cidade uma sofisticada infra-estrutura urbana, com transporte, segurança e todos os serviços públicos funcionando bem, além, é claro, de representar uma expansão sem precedentes para os negócios e as empresas, nacionais e internacionais. O Rio será, em muito breve, um canteiro de obras colossal. Em contrapartida, são milhares os turistas que nos visitarão, a cidade está se tornando internacionalmente conhecida e vultosos são os capitais que estão sendo investidos. Por isso, as transformações serão extensas, mexendo profundamente no nosso cotidiano.


Mas nem tudo são flores nesse mega mundo. Não erram aqueles que afirmam que esse período deixará a cidade reformada. Mas tão importante quanto essa constatação, só que muito menos popular para os governos e os meios de comunicação, é outra: os mega eventos representarão uma “faxina social” (ou chacina, como seria mais correto)! Sob o argumento da reurbanização do Rio de Janeiro, que não é ruim por si só, a Prefeitura está empreendendo o maior bota-abaixo desde que Pereira Passos, no início do século passado, transformou o Rio na Paris dos trópicos. Esqueceu-se o antigo Prefeito, assim como o atual, que nós temos muito mais pobres que a França. E, da mesma forma que naquela época se iniciou um brutal processo de favelização, agora o processo se amplia, mas para longe dos nossos olhos.


Se os olhos não vêem a miséria, se o nariz não sente o fedor e se nenhum pivete incomoda pedindo uma moeda no sinal, então, como num passe de mágica, tornamo-nos um país de primeiro mundo, depois de séculos na fila. Mas, nos limites da cidade, em toda a zona de conurbação urbana e principalmente na baixada fluminense, as favelas crescem. E crescem em um ritmo jamais visto. O contingente oriundo das remoções forçadas, da especulação imobiliária, das desapropriações não indenizadas e dos despejos ilegais empreendidos pela Prefeitura só aumentam a vazão desse ritmo migratório. Para aqueles que gostam de ler, Planeta Favela, de Mike Davis, faz um assustador relato dessa realidade.



Um pouco de direito: princípio da não remoção


Alguns podem achar que estou pegando pesado demais quando falo em remoção forçada e despejo ilegal. Afinal de contas, o fato é que seremos sede de importantes mega eventos e precisamos nos preparar. Até aí, tudo certo. O problema é que não pode ser a qualquer custo. Não estamos em nenhuma ditadura e nossos representantes são eleitos para nos proporcionarem uma boa vida, digna da nossa condição humana. Quando falamos em remoção e despejo, estamos falando de famílias que agora estão na rua. A própria Constituição, lei maior do país, em seu artigo 6º coloca a moradia no mesmo nível de outros direitos sociais, como a segurança, a educação e a saúde. Ter um lar é um direito fundamental e questão de justiça social.


Poderíamos apelar para o Direito Internacional e transcrever diversos tratados ratificados pelo Brasil. Ou ainda outras legislações estaduais e especiais sobre o tema. Mas vou me concentrar na Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, cuja função é reger a organização e funções deste ente federativo. De início, é importante tomar ciência de seu preâmbulo, para não a julgarmos equivocadamente: Nós, representantes do povo carioca, (...) dispostos a assegurar à população do Município a fruição dos direitos fundamentais da pessoa humana e o acesso à igualdade, à justiça social, ao desenvolvimento e ao bem-estar, numa sociedade solidária, democrática, policultural, pluriétnica, sem preconceitos nem discriminação (...)”


O Poder Executivo, a quem cabe respeitar e fazer cumprir as determinações legais, é o primeiro a ignorá-las sob os argumentos de que: é necessário se preparar, é importante compreender, temos que juntar forças para não passar vergonha, e mais isso, e mais aquilo. Na prática, o trator passa por cima. O trator passa por cima dos preceitos legais e a Guarda Municipal conta os corpos, enquanto a polícia do Estado impede qualquer um de tentar se defender frente à barbaridade. De um ano para cá, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, através de seu núcleo especializado para questões fundiárias (Núcleo de Terras e Habitação) constatou que os atendimentos aumentaram 83%, totalizando quase 100 mil famílias. Deixo ao leitor a álgebra necessária para chegar aos números finais, considerando a formação padrão de uma família pobre brasileira. Apenas para a construção das vias rodoviárias que ligarão os locais dos jogos, como a Transoeste e a Transcarioca, já eram, até dezembro do ano passado, 10.800 famílias afetadas. E o número vai crescer, está crescendo.


O procedimento da municipalidade é previsível, pois tem se repetido sempre. Chegam marcando as casas, como se ali não morasse gente. Junto às iniciais da Secretaria Municipal de Habitação (SMH), transformam uma família em um número. Emitem uma notificação para desocupação dos imóveis com prazo, não raro, de 24 horas – há casos onde consta prazo de desocupação de zero hora. Voltam no dia seguinte, com uma tropa de guardas do choque de ordem e policiais militares armados com fuzis. Colocam os móveis daqueles trabalhadores pobres, que muitas vezes demoraram anos para serem comprados, na rua. Passam o trator onde conseguem e, onde não é possível, colocam homens com marretas para quebrar as paredes. Na linguagem deles próprios, descaracterizam o local como moradia, para que aqueles pobres “vagabundos” não voltem.


Aqui vai mais um trecho importante da Lei Orgânica do Município: Art. 422 § 1º As funções sociais da Cidade compreendem o direito da população a moradia, transporte público, saneamento básico, água potável, serviços de limpeza urbana, drenagem das vias de circulação, energia elétrica, gás canalizado, abastecimento, iluminação pública, saúde, educação, cultura, creche, lazer, contenção de encostas, segurança e preservação, proteção e recuperação do patrimônio ambiental e cultural.”


O Poder Público pode sim remover as pessoas de um determinado lugar para construir o que quer que seja para o bem de toda a população, mas há princípios a serem observados. Os moradores devem ser indenizados em um processo de “Desapropiação da Posse”. Pode parecer estranho, mas a posse possui valor econômico e deve ser indenizada. Assim nos diz a doutrina e a jurisprudência dos nossos Tribunais, inclusive em Agravo de Instrumento Nº 1.261.328 – BA, cujo relator foi o ex-Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luiz Fux, o mais novo Ministro do STF, corte suprema da República. Outras opções são o reassentamento em lugar próximo ou a compra assistida de outro imóvel. Mas em todos os casos, o que observamos é que isso não é uma preocupação que oriente as condutas dos agentes públicos. Primeiro, eles derrubam e, depois, acionados na justiça, são obrigados a reparar os danos, embora isso não seja mais possível. Assim, começa o pesadelo dos antigos moradores com alugueres sociais injustos, insuficientes e que atrasam constantemente, ou conjuntos habitacionais erguidos às pressas, com infiltrações, sem rede de saneamento, escola, hospital, creche ou qualquer outro equipamento urbano.



E então, o que fazer?


Em assunto de direito à cidade, especialmente no que tange a moradia, os movimentos sociais lutam por uma reforma urbana em outros parâmetros. O Rio de Janeiro cresceu durante séculos sem um projeto de organização e uso do solo e, em uma metrópole, isso leva ao caos urbano, social e ambiental. Precisamos de um projeto que não seja baseado em interesses particulares de grandes empresários e especuladores. A cidade que queremos deve ter como meta garantir a satisfação das necessidades das pessoas, principalmente das classes trabalhadoras, que hoje vivem em uma “Cidade de Exceção”, onde os direitos são restritos pela força e pela ignorância. Onde, muitas vezes, o controle populacional é realizado através das armas, como nas comunidades com varejo armado da droga; nas comunidades com UPP’s, onde os fuzis estão em tão violentas mãos; e nas comunidades que vivem sob o terror da milícia.


É contra isso que deve agir o Direito. E um dos instrumentos para essa ação é a Lei, conquista histórica que não foi escrita por piedade ou por acaso. Os mega eventos devem significar bem estar geral e não enriquecimento de poucos. Contra a segregação em curso militam os movimentos organizados, respaldados pela Constituição, pelos tratados internacionais e, no nosso caso, pela Lei Orgânica. Aceitar viver sob os brados da civilização em barbárie atenta contra o Estado Democrático de Direito. Temos a história como exemplo e devemos aprender com exemplos similares em outras cidades e países que também foram sediaram os jogos.



Os profissionais do Direito e todos aqueles comprometidos com a justiça além do direito têm o dever ético e a responsabilidade profissional de assegurar o cumprimento das garantias legais, o avanço da legislação social e a responsabilização pelos ilícitos cometidos pela Prefeitura durante esse novo bota-abaixo. Regredir nessa questão é abrir espaço para uma cidade cuja população vai ser subjulgada pela exceção permanente, pelo medo e, principalmente, pelo capital.


* Diogo Flora é estudante de Direito da UERJ, militante do movimento "Direito Para Quem?" e estagiário do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública/RJ.



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