terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Legalização das Drogas - Entrevista com Renato Cinco

Renato Cinco, sociólogo e militante de esquerda, luta pela legalização das drogas e participa da organização da Marcha da Maconha. Entrevista realizada por Danilo Georges e Eliseu Pirocelli para o Fanzine Cartel do Rap.




BASTA DE GUERRA ÀS DROGAS!

O debate sobre as drogas não é simples; envolve questões diversas, como saúde, segurança pública e valores morais. No Brasil, a questão é abordada pelo Estado de uma forma, no mínimo, questionável.

Enquanto álcool, tabaco, refrigerantes e drogas de uso terapêutico são vendidos quase sem obstáculos, em alguns casos com divulgação ampla nos meios de comunicação, as drogas definidas como ilícitas são o centro de uma violenta guerra.

O Estado brasileiro promove cotidianamente nas grandes cidades verdadeiras batalhas que provocam milhares de mortes anualmente, principalmente entre as populações mais pobres. Morrem traficantes sem julgamento, policiais e um número inacreditável de inocentes.

Aparentemente estão enxugando gelo. As quadrilhas ficam cada vez mais bem armadas, a diversidade de drogas aumenta, as vítimas se multiplicam e o consumo continua. A cultura da maconha se disseminou tanto na classe média que existem locais, como condomínios e universidades, onde os jovens fumam tranqüilamente, sem serem importunados.

A proibição de drogas como cocaína e heroína faz com que não haja qualquer controle de qualidade, provocando overdose e/ou danos à saúde, em função das impurezas misturadas. Além disso, muitas vezes os consumidores compartilham seringas, o que pode ajudar a disseminar doenças, inclusive a AIDS.

A política proibicionista impede que políticas públicas de redução de danos sejam implementadas em larga escala.

Guerra às Drogas: a nova cara da velha Ditadura

Mas se esta política é tão inadequada, porque parece tão difícil mudá-la?

Com certeza por várias razões. Uma delas, talvez a mais importante, a moral religiosa reacionária que ainda encontra grande espaço na nossa sociedade e dificulta até que o assunto seja debatido. A adesão do Brasil a convenções da ONU de caráter proibicionista e a política de guerra às drogas do governo estadunidense exercem pressão permanente para que nada mude.

A política de guerra às drogas cumpre um papel ideológico na nossa sociedade, servindo de pretexto para o massacre sistemático dos pobres. Repressão contínua que gera o medo permanente em quem é obrigado a conviver com o crime violento praticado pela polícia e pelo tráfico.

Nos dias de hoje não é possível às classes dominantes usar a força contra os pobres e a esquerda sem que bons pretextos sejam formulados. A guerra às drogas tem este objetivo. Assim como a guerra ao terrorismo, ela serve como ilusão pois transforma a luta de classes em luta do bem contra o mal, da ordem contra a desordem, da democracia contra o terror, da lei contra o crime.

A perseguição aos comunistas, ao “perigo vermelho”, foi substituída pela repressão aos pobres em nome da ilegalidade do comércio das drogas. Mas em sua ação, as polícias agem de forma tão ou mais ilegal que o tráfico de drogas. Entram nas favelas atirando e desrespeitando as leis e as pessoas indistintamente.

Sabemos que com o pretexto de guerra às drogas, entre outros crimes, os EUA perseguiram as bases sociais dos Panteras Negras, financiaram os Contra da Nicarágua, satanizaram as FARC e justificam o Plano Colômbia.

Percebermos também, que em todo o mundo neoliberal os crimes de tráfico e uso de drogas são usados para prender em massa, obrigando o pobre a aceitar empregos precarizados, a viver sob o medo, sendo explorado, aviltado, desrespeitado em seus direitos básicos.

No Brasil, independente da intenção dos atores que definem a política de repressão, o fato é que esta política vem naturalizando uma prática autoritária, repressiva e assassina dentro do que se convencionou chamar de democracia. A política proibicionista e a ideologia de guerra às drogas vêm legitimando a cassação da cidadania da maioria dos pobres brasileiros. Milhares de pessoas são mortas e presas todos os anos por estarem traficando ou usando drogas, independente de serem violentas e perigosas. Outros milhares são mortos apenas por habitarem as áreas pobres, regiões que são tratadas como “território inimigo” pela polícia. Os jovens são as maiores vítimas.

A violência da luta entre traficantes e a ação da polícia justificada pela guerra às drogas vem dificultando severamente a organização popular e a participação política nas favelas e periferias.

Ano passado a polícia, somente no Estado do Rio, matou cerca de 1000 pessoas, todos pobres, a maioria negros, favelados e jovens. Se eram bandidos ou não, nunca saberemos ao certo. Mas com certeza não foram julgados e condenados à morte, alguns morreram em tiroteios, a maioria parece que foi executada.

Quando a sociedade permite que a polícia execute suspeitos, sem julgamento nem direito de defesa, não são apenas os criminosos que pagam, somos todos, mas principalmente aqueles com o perfil suspeito. No Brasil são os negros, pobres e jovens.

O argumento que legitima a ação truculenta é a guerra às drogas. A conseqüência é a impotência política daqueles que mais interesse têm na transformação da sociedade.


Manifesto da oficina “Basta de Guerra às Drogas!”, Acampamento da Juventude - Fórum Social Mundial, Porto Alegre, 29 de janeiro de 2005.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Haiti: estamos abandonados

Por Otávio Calegari Jorge

A noite de ontem foi a coisa mais extraordinária de minha vida. Deitado do lado de fora da casa onde estamos hospedados, ao som das cantorias religiosas que tomaram lugar nas ruas ao redor e banhado por um estrelado e maravilhoso céu caribenho, imagens iam e vinham. No entanto, não escrevo este pequeno texto para alimentar a avidez sádica de um mundo já farto de imagens de sofrimento.O que presenciamos ontem no Haiti foi muito mais do que um forte terremoto. Foi a destruição do centro de um país sempre renegado pelo mundo. Foi o resultado de intervenções, massacres e ocupações que sempre tentaram calar a primeira república negra do mundo. Os haitianos pagam diariamente por esta ousadia.

O que o Brasil e a ONU fizeram em seis anos de ocupação no Haiti? As casas feitas de areia, a falta de hospitais, a falta de escolas, o lixo. Alguns desses problemas foram resolvidos com a presença de milhares de militares de todo mundo?

A ONU gasta meio bilhão de dólares por ano para fazer do Haiti um teste de guerra. Ontem pela manhã estivemos no BRABATT, o principal Batalhão Brasileiro da Minustah. Quando questionado sobre o interesse militar brasileiro na ocupação haitiana, Coronel Bernardes não titubeou: o Haiti, sem dúvida, serve de laboratório (exatamente, laboratório) para os militares brasileiros conterem as rebeliões nas favelas cariocas. Infelizmente isto é o melhor que podemos fazer a este país.

Hoje, dia 13 de janeiro, o povo haitiano está se perguntando mais do que nunca: onde está a Minustah quando precisamos dela?

Posso responder a esta pergunta: a Minustah está removendo os escombros dos hotéis de luxo onde se hospedavam ricos hóspedes estrangeiros.

Longe de mim ser contra qualquer medida nesse sentido, mesmo porque, por sermos estrangeiros e brancos, também poderíamos necessitar de qualquer apoio que pudesse vir da Minustah.

A realidade, no entanto, já nos mostra o desfecho dessa tragédia – o povo haitiano será o último a ser atendido, e se possível. O que vimos pela cidade hoje e o que ouvimos dos haitianos é: estamos abandonados.

A polícia haitiana, frágil e pequena, já está cumprindo muito bem seu papel – resguardar supermercados destruídos de uma população pobre e faminta. Como de praxe, colocando a propriedade na frente da humanidade.

Me incomoda a ânsia por tragédias da mídia brasileira e internacional. Acho louvável a postura de nossa fotógrafa de não sair às ruas de Porto Príncipe para fotografar coisas destruídas e pessoas mortas. Acredito que nenhum de nós gostaria de compartilhar, um pouco que seja, o que passamos ontem.

Infelizmente precisamos de mais uma calamidade para notarmos a existência do Haiti. Para nós, que estamos aqui, a ligação com esse povo e esse país será agora ainda mais difícil de ser quebrada.

Espero que todos os que estão acompanhando o desenrolar desta tragédia também se atentem, antes tarde do que nunca, para este pequeno povo nesta pequena metade de ilha que deu a luz a uma criatividade, uma vontade de viver e uma luta tão invejáveis.


(*) Texto extraído do blog de pesquisadores da Unicamp no Haiti, http://lacitadelle.wordpress.com


quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

FERRAMENTA JURÍDICA QUE LEGITIMA O EXTERMÍNIO

Por Leandro Uchoas

No último dia 10 de dezembro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completou 61 anos. No Estado do Rio de Janeiro, a revelação de um dado deu sinais claros de que não há muito o que comemorar. Nos últimos onze anos, o número de mortos em “autos de resistência” aumentou em 10,2 mil. As informações divulgadas representam o crescimento escancarado da atuação assassina da polícia carioca. Criado para justificar homicídios através da suposta reação do opositor, o auto de resistência é frequentemente utilizado como forma de legitimar assassinatos sumários em ações policiais. A maioria das vítimas é pobre e negra.

Desde 1998, a polícia fluminense usou o instrumento para justificar 2,4 pessoas assassinadas por dia. Desde que se começou a contabilizar a ferramenta, a relação de mortos por ferido aumentou de 1,7 para 3,5. Na capital, o número de assassinatos em ações policiais dobrou no período, de 16 a 32. A análise das informações sugere, invariavelmente, fortes indícios de que a maioria dos assassinatos registrados como “auto de resistência” não passam de execução sumária. Os valores foram divulgados pela própria Secretaria de Segurança Pública do Estado.

A média de mortos em confrontos armados, durante o governo Sérgio Cabral (PMDB), é maior do que a de todas as administrações que a precederam. Enquanto o governo Marcelo Allencar (1995-1999) teve índice de 1 morte por dia, e o governo Rosinha Garotinha (2003-2006) de 2,9, o governo Cabral convive com constrangedores 3,3 assassinatos diários. Apenas em 2007, auge do problema, 1330 mortes foram registradas (3,6 por dia). A polícia de Cabral chegou a utilizar o instrumento 147 vezes em abril de 2008 (4,9 por dia).

“Sérgio Cabral já assumiu o governo com um discurso populista de que não iria dar trégua, nem tolerar excessos. Esse é, na verdade, um discurso que estimula a política de extermínio, e é reproduzido por toda a cúpula de Segurança Pública. A tendência de aumento do uso de autos de resistência é histórica, mas já ficava claro no início de que haveria um salto no governo Cabral”, defende Maurício Campos, da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência.

Um estudo da ex-diretora do Instituto de Segurança Pública, a antropóloga Ana Paula Miranda, comprova por comparação que a utilização dos autos de resistência mascaram uma política de extermínio. Segundo os dados, de 2000 a 2008, a relação “presos em flagrante” versus “mortos pela polícia” caiu cinco vezes. Era de 75,4, passou a 21,8 em 2004 até chegar a 15,2 no último ano. A interpretação dos dados tem sido unânime para os estudiosos de Segurança Pública. A polícia, cada vez mais, deixa de prender para matar.

Ana Paula foi exonerada em fevereiro de 2008 justamente após revelar informações incômodas. A Organização das Nações Unidas (ONU) orienta que esse tipo de registro de mortes seja computado nos dados de aferição de homicídios. Entretanto, o governo estadual omite os autos de resistência do cálculo. No Rio de Janeiro, o número de assassinatos causados pela polícia equivale a 12% dos homicídios dolosos.

O auto de resistência foi criado durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Começou a ser contabilizado e superexplorado durante o governo Marcelo Alencar (PSDB). Na época, criou-se uma sinistra premiação que ficou conhecida como “gratificação faroeste”. Com poder de utilizar o auto de resistência – com potencial de registrar o algoz como vítima –, tornou-se fácil ser contemplado pelo prêmio.

Condenação Internacional

No último dia 8 de dezembro, denúncias da Human Rights Watch somaram-se aos dados estarrecedores de aumento dos autos de resistência. Segundo a ONG, 11 mil pessoas foram assassinadas pelas polícias do Rio de Janeiro e de São Paulo desde 2003 (o valor equivale a quase quatro vezes o número de mortos no ataque ao World Trade Center). Dentre elas, pelo menos 64% teriam sido sumariamente executadas. A pesquisa foi realizada por amostra de 51 casos, a partir de relatórios médicos. No Estado do Rio, 7,8 mil acusações de crime policial geraram apenas quatro condenações.

Ao se analisar as informações da perícia médica, há casos claros de tiro na nuca ou pelas costas, que comprovariam o assassinato. Escrito por vinte familiares de vítimas de violência, um livro sobre o tema está sendo lançado em dezembro. “Auto de Resistência – Relatos de Familiares e Vítimas da Violência Armada” foi organizado por Tatiana Moura, Carla Afonso e Bárbara Musumeci. Conta com depoimentos de ativistas como Márcia Jacintho, ganhadora do Prêmio Faz Diferença e da Medalha Chico Mendes, e Marilene de Souza, uma das mães de Acari.

(*) Matéria publicada originalmente no jornal Brasil de Fato e extraída de www.fazendomedia.com.