Depois de ser proibida em 2008 pelo Tribunal de Justiça do Rio, quando um advogado chegou a ser preso (foto acima) por se manifestar no local previsto para o protesto, foi concedido à Marcha da Maconha, no dia 28 de abril, um HC que garante a sua realização.
A passeata deste ano pela legalização ocorrerá em mais de 300 cidades pelo mundo e 9 no Brasil. No Rio de Janeiro será realizada no dia 1º de maio, às 14h no Jardim de Alah (Ipanema).
Segue abaixo a íntegra da Sentença.
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IV JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL
Habeas Corpus nº 0126246-87.2010.8.19.0001
Impetrantes: Nilo Batista, Cláudio Costa, Gerardo Xavier Santiago, André Barros e Maria Clara Batista
Paciente: Renato Athayde Silva
Pretendem, os impetrantes, ordem de habeas corpus preventiva para possibilitar ao paciente participar da denominada Marcha da Maconha, a ser realizada no dia 1º de maio de 2010, nesta Comarca do Rio de Janeiro. Alegam que há risco de prisão e de criminalização, como já ocorreu em 2008, e esclarecem que a Marcha não se destina a incentivar nem o porte, nem o uso da substância.
O MP opinou favoravelmente.
No ano passado, proferi decisão que transcrevo abaixo, pois a hipótese é a mesma.
Em primeiro lugar, cumpre precisar qual a questão jurídica de que se trata realmente para evitar interpretações menos cuidadosas: a questão jurídica sobre a qual vai-se decidir versa sobre a liberdade de expressão ou de manifestação de pensamento, direito fundamental previsto no artigo 5º, IV, e artigo 220 da Constituição brasileira, bem como artigo 10 do Convênio Europeu de Direitos Humanos e artigos XVIII e XIX da Declaração Universal de Direitos Humanos. Versa, também, sobre o direito fundamental de reunião, agasalhado no artigo 5º, XVI, da Constituição e no artigo XX da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Não se está decidindo absolutamente nada sobre uso de substância entorpecente!
Dessa mesma matriz - liberdade de expressão - surgiu, também, a liberdade de imprensa. Pretender cercear a liberdade de expressão é admitir-se a possibilidade de cercear a outra também. Mas a liberdade de expressão deve ser mais livre ainda que a liberdade de imprensa. Todos os doutrinadores que se dedicam a examinar a natureza das duas liberdades deparam-se com, pelo menos, uma distinção importante entre os dois institutos: o dever de veracidade e de imparcialidade da imprensa, que não ocorre com a liberdade de expressão de um pensamento.
Enquanto que a expressão de uma idéia, uma opinião, um pensamento, não encontra, necessariamente, qualquer apego aos fatos, à veracidade, à imparcialidade, atributos que não lhe cumpre preencher, a informação, como bem jurídico que é, não pode ser confundida como simples manifestação do pensamento. Quem veicula uma informação, ou seja, quem divulga a existência, a ocorrência, o acontecimento de um fato, de uma qualidade, ou de um dado, deve ficar responsável pela demonstração de sua existência objetiva, despida de qualquer apreciação pessoal.
A conclusão que se impõe é que, embora gêneros de uma mesma espécie, a liberdade de manifestação de pensamento deve merecer uma proteção até mais intensa do que merecem os meios de comunicação porque estes têm de prestar alguma obediência à veracidade do que publicam, enquanto aquela não: é livre, desde que não agrida direitos de outrem; não precisa ser verdadeira e não tem a obrigação de ser a opinião mais correta.
O grau de importância que a Constituição atribuiu à livre expressão, como direito fundamental, a põe a salvo de certas investidas do poder público visando à sua limitação. Assim, vige, para ela o princípio distributivo, que assegura-lhe, em princípio, ampla liberdade, na medida em que a intervenção estatal é limitável, controlável e dependente de permissão constitucional, como consagra o artigo 220 da Constituição . Conseqüentemente, aos agentes administrativos e policiais não cabe imiscuírem-se na liberdade de expressão, a título de controlar sua legitimidade, providência de todo inconstitucional.
O exercício livre da liberdade de expressão de pensamentos foi consagrado ao mesmo tempo em que se reivindicou a existência de um espaço público para fazê-lo, que significou, em última instância, uma dimensão pública do indivíduo: o seu direito de participar da vida pública e das decisões do Estado. O ápice desses movimentos sociais aconteceu com as revoluções liberais que, segundo Nelson Saldanha, entronizaram a praça como lugar de decisões históricas.
A idéia de praça indicaria o espaço público, político, econômico, religioso ou militar, e corresponderia ao advento da ordem institucional. É o lócus da opinião pública, conquista dos movimentos liberais. O mesmo autor afirma que ´sem o espaço público, porém, não teria sido historicamente possível a implantação da república nem da democracia moderna, nem a vigência da opinião pública, nem a racionalização da ordem jurídica´ . As praças e as ruas pertencem aos processos sociais e é nelas que os movimentos sociais devem se expressar. Pretender interditar o lugar público para o exercício da liberdade de expressão é desconhecer todo o processo histórico que possibilitou a invenção da democracia.
Quando Ulysses Guimarães e Tancredo Neves levaram milhões de brasileiros às praças públicas para reivindicarem eleições diretas em todos os níveis, no movimento Diretas Já, em 1984, estavam, justamente, ensinando o povo brasileiro a exercitar a democracia, num Brasil em que não havia. Poderiam ser acusados de apologia de crime, enquadrados no artigo 23 da Lei de Segurança Nacional, mas não o foram: nem o regime militar ousou tanto, naquele limiar democrático.
Não há crime de apologia quando o que se pretende é discutir uma política pública, seja a de participação popular no poder, seja a de saúde, seja a fundiária, etc. Não importa muito o teor do pensamento, da argumentação, que será expressa no locus público. Para a Constituição, o que importa é a liberdade de fazê-lo. Pode se tratar de uma grande causa humanitária ou de assuntos de menor importância: não importa, desde que seja feito com respeito.
O Judiciário, nem qualquer outro Poder da República, pode se arrogar a função de censor do que pode ou do que não pode ser discutido numa manifestação social. Quem for contra o que será dito, que faça outra manifestação para dizer que é contra e por que. No caso dos autos, que digam por que a maconha e outras drogas legais, como o álcool, fazem mal a saúde; exibam depoimentos de ex-viciados; transmitam o que dizem os especialistas da saúde etc.
O que não podem fazer é tentar impedi-la. Isso, sim, seria inconstitucional, atentatório à ordem pública e às liberdades públicas.
Por fim, para que não se diga que o Judiciário é a favor do uso de qualquer tipo de droga, é bom que se proclame que os especialistas em saúde já declararam que quaisquer drogas, bem como o álcool e o cigarro fazem mal à saúde. O problema é que a política pública não é a de informar que todas - só algumas são objeto de informação - fazem mal, nem tem sido a de tratar os usuários, mas a política de repressão, que não está funcionando, como revelam dados da ONU, publicados pela imprensa e trazidos pelos impetrantes.
Isso posto, concede-se a ordem para possibilitar ao paciente a participação na manifestação prevista para o dia 1º/5/2010. Estende-se a ordem, de ofício, para todos os demais participantes que, tal qual o paciente, pretendam participar democraticamente, sem usar e sem incentivar o uso da substância entorpecente referida. Expeça-se salvo conduto, encaminhando-se cópia à Delegacia da área e à Polícia Militar. RJ, 28/04/2010 Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho Juiz de Direito.
A passeata deste ano pela legalização ocorrerá em mais de 300 cidades pelo mundo e 9 no Brasil. No Rio de Janeiro será realizada no dia 1º de maio, às 14h no Jardim de Alah (Ipanema).
Segue abaixo a íntegra da Sentença.
_______________________________________________________________
IV JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL
Habeas Corpus nº 0126246-87.2010.8.19.0001
Impetrantes: Nilo Batista, Cláudio Costa, Gerardo Xavier Santiago, André Barros e Maria Clara Batista
Paciente: Renato Athayde Silva
Pretendem, os impetrantes, ordem de habeas corpus preventiva para possibilitar ao paciente participar da denominada Marcha da Maconha, a ser realizada no dia 1º de maio de 2010, nesta Comarca do Rio de Janeiro. Alegam que há risco de prisão e de criminalização, como já ocorreu em 2008, e esclarecem que a Marcha não se destina a incentivar nem o porte, nem o uso da substância.
O MP opinou favoravelmente.
No ano passado, proferi decisão que transcrevo abaixo, pois a hipótese é a mesma.
Em primeiro lugar, cumpre precisar qual a questão jurídica de que se trata realmente para evitar interpretações menos cuidadosas: a questão jurídica sobre a qual vai-se decidir versa sobre a liberdade de expressão ou de manifestação de pensamento, direito fundamental previsto no artigo 5º, IV, e artigo 220 da Constituição brasileira, bem como artigo 10 do Convênio Europeu de Direitos Humanos e artigos XVIII e XIX da Declaração Universal de Direitos Humanos. Versa, também, sobre o direito fundamental de reunião, agasalhado no artigo 5º, XVI, da Constituição e no artigo XX da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Não se está decidindo absolutamente nada sobre uso de substância entorpecente!
Dessa mesma matriz - liberdade de expressão - surgiu, também, a liberdade de imprensa. Pretender cercear a liberdade de expressão é admitir-se a possibilidade de cercear a outra também. Mas a liberdade de expressão deve ser mais livre ainda que a liberdade de imprensa. Todos os doutrinadores que se dedicam a examinar a natureza das duas liberdades deparam-se com, pelo menos, uma distinção importante entre os dois institutos: o dever de veracidade e de imparcialidade da imprensa, que não ocorre com a liberdade de expressão de um pensamento.
Enquanto que a expressão de uma idéia, uma opinião, um pensamento, não encontra, necessariamente, qualquer apego aos fatos, à veracidade, à imparcialidade, atributos que não lhe cumpre preencher, a informação, como bem jurídico que é, não pode ser confundida como simples manifestação do pensamento. Quem veicula uma informação, ou seja, quem divulga a existência, a ocorrência, o acontecimento de um fato, de uma qualidade, ou de um dado, deve ficar responsável pela demonstração de sua existência objetiva, despida de qualquer apreciação pessoal.
A conclusão que se impõe é que, embora gêneros de uma mesma espécie, a liberdade de manifestação de pensamento deve merecer uma proteção até mais intensa do que merecem os meios de comunicação porque estes têm de prestar alguma obediência à veracidade do que publicam, enquanto aquela não: é livre, desde que não agrida direitos de outrem; não precisa ser verdadeira e não tem a obrigação de ser a opinião mais correta.
O grau de importância que a Constituição atribuiu à livre expressão, como direito fundamental, a põe a salvo de certas investidas do poder público visando à sua limitação. Assim, vige, para ela o princípio distributivo, que assegura-lhe, em princípio, ampla liberdade, na medida em que a intervenção estatal é limitável, controlável e dependente de permissão constitucional, como consagra o artigo 220 da Constituição . Conseqüentemente, aos agentes administrativos e policiais não cabe imiscuírem-se na liberdade de expressão, a título de controlar sua legitimidade, providência de todo inconstitucional.
O exercício livre da liberdade de expressão de pensamentos foi consagrado ao mesmo tempo em que se reivindicou a existência de um espaço público para fazê-lo, que significou, em última instância, uma dimensão pública do indivíduo: o seu direito de participar da vida pública e das decisões do Estado. O ápice desses movimentos sociais aconteceu com as revoluções liberais que, segundo Nelson Saldanha, entronizaram a praça como lugar de decisões históricas.
A idéia de praça indicaria o espaço público, político, econômico, religioso ou militar, e corresponderia ao advento da ordem institucional. É o lócus da opinião pública, conquista dos movimentos liberais. O mesmo autor afirma que ´sem o espaço público, porém, não teria sido historicamente possível a implantação da república nem da democracia moderna, nem a vigência da opinião pública, nem a racionalização da ordem jurídica´ . As praças e as ruas pertencem aos processos sociais e é nelas que os movimentos sociais devem se expressar. Pretender interditar o lugar público para o exercício da liberdade de expressão é desconhecer todo o processo histórico que possibilitou a invenção da democracia.
Quando Ulysses Guimarães e Tancredo Neves levaram milhões de brasileiros às praças públicas para reivindicarem eleições diretas em todos os níveis, no movimento Diretas Já, em 1984, estavam, justamente, ensinando o povo brasileiro a exercitar a democracia, num Brasil em que não havia. Poderiam ser acusados de apologia de crime, enquadrados no artigo 23 da Lei de Segurança Nacional, mas não o foram: nem o regime militar ousou tanto, naquele limiar democrático.
Não há crime de apologia quando o que se pretende é discutir uma política pública, seja a de participação popular no poder, seja a de saúde, seja a fundiária, etc. Não importa muito o teor do pensamento, da argumentação, que será expressa no locus público. Para a Constituição, o que importa é a liberdade de fazê-lo. Pode se tratar de uma grande causa humanitária ou de assuntos de menor importância: não importa, desde que seja feito com respeito.
O Judiciário, nem qualquer outro Poder da República, pode se arrogar a função de censor do que pode ou do que não pode ser discutido numa manifestação social. Quem for contra o que será dito, que faça outra manifestação para dizer que é contra e por que. No caso dos autos, que digam por que a maconha e outras drogas legais, como o álcool, fazem mal a saúde; exibam depoimentos de ex-viciados; transmitam o que dizem os especialistas da saúde etc.
O que não podem fazer é tentar impedi-la. Isso, sim, seria inconstitucional, atentatório à ordem pública e às liberdades públicas.
Por fim, para que não se diga que o Judiciário é a favor do uso de qualquer tipo de droga, é bom que se proclame que os especialistas em saúde já declararam que quaisquer drogas, bem como o álcool e o cigarro fazem mal à saúde. O problema é que a política pública não é a de informar que todas - só algumas são objeto de informação - fazem mal, nem tem sido a de tratar os usuários, mas a política de repressão, que não está funcionando, como revelam dados da ONU, publicados pela imprensa e trazidos pelos impetrantes.
Isso posto, concede-se a ordem para possibilitar ao paciente a participação na manifestação prevista para o dia 1º/5/2010. Estende-se a ordem, de ofício, para todos os demais participantes que, tal qual o paciente, pretendam participar democraticamente, sem usar e sem incentivar o uso da substância entorpecente referida. Expeça-se salvo conduto, encaminhando-se cópia à Delegacia da área e à Polícia Militar. RJ, 28/04/2010 Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho Juiz de Direito.
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