Professor da American University (EUA), Miguel Carter pesquisa há quase duas décadas os conflitos fundiários e a luta pela terra no Brasil. Nascido no México e criado no Paraguai, o cientista político percorreu mais de 160 mil quilômetros a bordo de um fusca preto pelos rincões do Brasil desde 1987, quando, ainda estudante, decidiu desbravar o interior com um mochilão nas costas. No início dos anos 90, já com uma bolsa de estudos da Columbia University, voltaria à rotina de viagens pelo País, desta vez com uma proposta de pesquisa mais elaborada, dedicada a lançar luzes sobre a questão fundiária brasileira.
O pesquisador acaba de lançar um livro sobre o tema, Combatendo a Desigualdade Social – O MST e a reforma agrária no Brasil (Editora Unesp, 564 págs., R$ 65). Trata-se de uma coletânea de artigos escritos por renomados pesquisadores de universidades brasileiras, europeias e dos Estados Unidos, um trabalho que tem sido coordenado e organizado por Carter desde 2003.
Na obra, Carter destaca a importância da reforma agrária para reduzir as desigualdades sociais e defende a necessidade- de o Estado investir em políticas de redistribuição de renda. “Os estudos compravam que, quando temos uma situação de extrema desigualdade, isso atrapalha o desenvolvimento econômico.”
CartaCapital: No Brasil, há quem defenda que o País precisa crescer antes de repartir suas riquezas. O senhor defende o inverso. Por quê?
Miguel Carter: O Banco Mundial e o Bando Interamericano de Desenvolvimento (BID) têm feito estudos importantes, inclusive com avaliações econométricas, comprovando que, quando temos uma situação de extrema desigualdade, isso atrapalha o desenvolvimento econômico. Quem não tem acesso ao crédito, à terra e à educação não tem condições de produzir nem consumir, e isso impede o PIB de crescer. Nancy Birdsall, do Center for Global Development, comparou o desempenho da economia brasileira com o da Coreia do Sul, país que, após a Segunda Guerra Mundial, promoveu uma reforma agrária radical. E, ao fazer uma simulação, constatou que a economia brasileira teria crescido 17,2% mais entre 1960 e 1985 se tivesse os níveis sul-coreanos de igualdade social. A disparidade de renda custou ao Brasil ao menos 0,66% do PIB todos os anos.
CC: O que há de errado com o modelo de desenvolvimento?
MC: A questão central é o tipo de crescimento que estamos promovendo. De acordo com um relatório do Banco Mundial, o Brasil poderia reduzir a pobreza pela metade em dez anos com um crescimento de 3% e uma melhora do coeficiente Gini (indicador de desigualdade) de 5%. No entanto, o País levaria 30 anos para cumprir esse objetivo com os mesmos 3% de crescimento e nenhuma melhora na distribuição de renda.
CC: A reforma agrária é, de fato, capaz de reduzir as disparidades sociais?
MC: Ela é fundamental. Não é o único instrumento. Tem vários outros, como política salarial, de previdência, educação... É o conjunto dessas políticas que pode mudar o quadro de extrema desigualdade. O Brasil melhorou a distribuição de renda, mas ainda é o décimo país mais desigual do mundo. A reforma agrária pode contribuir para a redistribuição das riquezas, além de evitar o êxodo rural e estimular o desenvolvimento local. O Brasil poderia seguir o exemplo de diversos países asiáticos, que há décadas fixaram limites para o tamanho da propriedade rural. Na Coreia do Sul, é de 3 hectares. No Japão, varia de 1 a 10 hectares, conforme o acesso à irrigação.
CC: A que se deve o atraso brasileiro em promover uma ampla reforma agrária?
MC: O principal fator é o poder que tem a elite agrária no Brasil. Desde o tempo de Colônia, é um setor muito forte. Joaquim Nabuco e outros liberais já falavam em reforma agrária na época do Império, mas essa discussão sempre foi barrada. Getúlio Vargas, na década de 30, deu direitos aos trabalhadores urbanos, mas nem sequer permitiu a legalização dos sindicatos rurais. A classe camponesa foi a mais marginalizada e a que sofreu as piores repressões, nos diversos momentos autoritários.
CC: De que forma o governo favoreceu a elite agrária?
MC: No regime militar, o governo decidiu investir no fortalecimento e na modernização da agricultura, com uma grande carga de subsídios. Até hoje o volume de gastos estatais com o chamado agronegócio é muito superior ao pago à agricultura familiar. Estima-se a existência de 22 mil grandes proprietários que receberam, entre 1995 e 2005, algo em torno de 58,2 bilhões de dólares do governo federal. Ao passo que mais de 6,1 milhões de camponeses receberam apenas 10,2 bilhões no mesmo período. Essa política de forte estímulo à agricultura empresarial, em detrimento dos pequenos produtores, é fruto da ditadura.
CC: O que explica o surgimento de um movimento como o MST nesse cenário desfavorável?
MC: Após a redemocratização do País, criou-se um espaço para reivindicações, com maior liberdade de associação. É nesse contexto que surgem os movimentos sociais. No campo, o MST é o maior deles, o mais reconhecido. Mas a reforma agrária promovida nos últimos anos foi conservadora. Houve alguma redistribuição de terra, mas sempre após longos processos burocráticos e de forma residual. Não se redistribui terra pensando em mudar a estrutura agrária. E quase sempre isso ocorre em locais que não são de interesse da elite. Em áreas afastadas, na Amazônia, ou em pastagens não muito valorizadas.
CC: O que garantiu o êxito do MST?
MC: O MST decidiu bem cedo criar um movimento nacional, com dinâmica de mobilização de massas. E conseguiu isso com um êxito sem precedentes na história do Brasil. Juntar 12 mil pessoas, em 17 dias, para uma marcha pelo País em 2005, é uma coisa inédita não apenas na história brasileira como do mundo inteiro. Além disso, o MST criou importantes estratégias. Articulou-se em rede, criou uma estrutura descentralizada, baseada em processos decisórios coletivos. Não existe reforma agrária sem o Estado, assim como é muito difícil o governo promovê-la sem que haja reivindicação, uma demanda organizada. E o MST surge para organizar essa demanda. O movimento contribui para a democratização do País.
CC: Por quê?
MC: O MST vai aonde está a população mais pobre do Brasil e a convida para participar do movimento. O pessoal envolve-se nos acampamentos, aprende sobre os seus direitos, conhece a política do Brasil. Criam-se assim verdadeiras escolas de cidadania. As pessoas de fora entendem essa dinâmica melhor que vários intelectuais do Brasil, que veem uma ocupação de terra como um grande desrespeito ao Estado de Direito. Eles não entendem que a luta pela democratização implica choques desse tipo. Ás vezes é preciso violar certas leis em razão de um princípio maior. Os movimentos sociais não são inimigos, são arquitetos de uma nova ordem jurídica. O movimento operário, por exemplo, foi fundamental para a criação das atuais leis trabalhistas.
CC: E como o Judiciário se porta diante dessas demandas?
MC: O Judiciário, de modo geral, é um grande obstáculo. Não porque as leis são as piores. A lei permite a reforma agrária. O problema é a interpretação. Em boa parte, isso tem relação com a origem de classe dos juízes. Muitos são filhos de grandes fazendeiros, frequentam os mesmos clubes. Também há a questão da formação, que enfatiza certos aspectos da lei, e não outros.
CC: A partir do governo FHC, há uma maior distribuição de terras no Brasil, ainda que sob a perspectiva de uma reforma agrária conservadora, como o senhor define. Há alguma diferença entre a política de FHC e a do governo Lula?
MC: Comparados com os demais presidentes, eles distribuíram mais terra. Fernando Henrique, até pela conjuntura, o massacre de Eldorado dos Carajás, uma mobilização intensa, investiu nisso. Lula, de modo geral, mais ou menos manteve o que FHC fez. Eu tenho uma visão de reforma agrária mais restrita que a do Incra. Eu, por exemplo, excluo dos números da reforma agrária aquilo que é relacionado à regularização fundiária. Também não considero as áreas de reserva extrativista na Amazônia. Sou a favor, mas isso é um outro tipo de política. Excluindo esses dados, o número de assentamentos dos dois é muito semelhante.
CC: Não há nenhuma diferença?
MC: Houve, no governo Lula, a criação de uma série de programas de apoio à reforma agrária, como acesso ao microcrédito, incremento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, aumento da eletrificação rural. Aumentaram os recursos para a agricultura familiar. Nesse sentido, Lula foi menos conservador do que FHC. Por outro lado, Lula assentou muito mais gente na Amazônia e no Norte do Brasil, repetindo um padrão de colonização da época da ditadura.
CC: O Brasil foi capaz de estancar a concentração de terras?
MC: Essa reforma conservadora apenas reduziu o ritmo da concentração de terras, mas não foi capaz de desconcentrar nada. Para isso, seria necessária uma reforma progressista. Mas isso não está em pauta no governo. Está na pauta do MST e de alguns partidos de esquerda. No momento, infelizmente, a disputa é pela sobrevivência dessa reforma conservadora. Ou isso ou nada.
O pesquisador acaba de lançar um livro sobre o tema, Combatendo a Desigualdade Social – O MST e a reforma agrária no Brasil (Editora Unesp, 564 págs., R$ 65). Trata-se de uma coletânea de artigos escritos por renomados pesquisadores de universidades brasileiras, europeias e dos Estados Unidos, um trabalho que tem sido coordenado e organizado por Carter desde 2003.
Na obra, Carter destaca a importância da reforma agrária para reduzir as desigualdades sociais e defende a necessidade- de o Estado investir em políticas de redistribuição de renda. “Os estudos compravam que, quando temos uma situação de extrema desigualdade, isso atrapalha o desenvolvimento econômico.”
CartaCapital: No Brasil, há quem defenda que o País precisa crescer antes de repartir suas riquezas. O senhor defende o inverso. Por quê?
Miguel Carter: O Banco Mundial e o Bando Interamericano de Desenvolvimento (BID) têm feito estudos importantes, inclusive com avaliações econométricas, comprovando que, quando temos uma situação de extrema desigualdade, isso atrapalha o desenvolvimento econômico. Quem não tem acesso ao crédito, à terra e à educação não tem condições de produzir nem consumir, e isso impede o PIB de crescer. Nancy Birdsall, do Center for Global Development, comparou o desempenho da economia brasileira com o da Coreia do Sul, país que, após a Segunda Guerra Mundial, promoveu uma reforma agrária radical. E, ao fazer uma simulação, constatou que a economia brasileira teria crescido 17,2% mais entre 1960 e 1985 se tivesse os níveis sul-coreanos de igualdade social. A disparidade de renda custou ao Brasil ao menos 0,66% do PIB todos os anos.
CC: O que há de errado com o modelo de desenvolvimento?
MC: A questão central é o tipo de crescimento que estamos promovendo. De acordo com um relatório do Banco Mundial, o Brasil poderia reduzir a pobreza pela metade em dez anos com um crescimento de 3% e uma melhora do coeficiente Gini (indicador de desigualdade) de 5%. No entanto, o País levaria 30 anos para cumprir esse objetivo com os mesmos 3% de crescimento e nenhuma melhora na distribuição de renda.
CC: A reforma agrária é, de fato, capaz de reduzir as disparidades sociais?
MC: Ela é fundamental. Não é o único instrumento. Tem vários outros, como política salarial, de previdência, educação... É o conjunto dessas políticas que pode mudar o quadro de extrema desigualdade. O Brasil melhorou a distribuição de renda, mas ainda é o décimo país mais desigual do mundo. A reforma agrária pode contribuir para a redistribuição das riquezas, além de evitar o êxodo rural e estimular o desenvolvimento local. O Brasil poderia seguir o exemplo de diversos países asiáticos, que há décadas fixaram limites para o tamanho da propriedade rural. Na Coreia do Sul, é de 3 hectares. No Japão, varia de 1 a 10 hectares, conforme o acesso à irrigação.
CC: A que se deve o atraso brasileiro em promover uma ampla reforma agrária?
MC: O principal fator é o poder que tem a elite agrária no Brasil. Desde o tempo de Colônia, é um setor muito forte. Joaquim Nabuco e outros liberais já falavam em reforma agrária na época do Império, mas essa discussão sempre foi barrada. Getúlio Vargas, na década de 30, deu direitos aos trabalhadores urbanos, mas nem sequer permitiu a legalização dos sindicatos rurais. A classe camponesa foi a mais marginalizada e a que sofreu as piores repressões, nos diversos momentos autoritários.
CC: De que forma o governo favoreceu a elite agrária?
MC: No regime militar, o governo decidiu investir no fortalecimento e na modernização da agricultura, com uma grande carga de subsídios. Até hoje o volume de gastos estatais com o chamado agronegócio é muito superior ao pago à agricultura familiar. Estima-se a existência de 22 mil grandes proprietários que receberam, entre 1995 e 2005, algo em torno de 58,2 bilhões de dólares do governo federal. Ao passo que mais de 6,1 milhões de camponeses receberam apenas 10,2 bilhões no mesmo período. Essa política de forte estímulo à agricultura empresarial, em detrimento dos pequenos produtores, é fruto da ditadura.
CC: O que explica o surgimento de um movimento como o MST nesse cenário desfavorável?
MC: Após a redemocratização do País, criou-se um espaço para reivindicações, com maior liberdade de associação. É nesse contexto que surgem os movimentos sociais. No campo, o MST é o maior deles, o mais reconhecido. Mas a reforma agrária promovida nos últimos anos foi conservadora. Houve alguma redistribuição de terra, mas sempre após longos processos burocráticos e de forma residual. Não se redistribui terra pensando em mudar a estrutura agrária. E quase sempre isso ocorre em locais que não são de interesse da elite. Em áreas afastadas, na Amazônia, ou em pastagens não muito valorizadas.
CC: O que garantiu o êxito do MST?
MC: O MST decidiu bem cedo criar um movimento nacional, com dinâmica de mobilização de massas. E conseguiu isso com um êxito sem precedentes na história do Brasil. Juntar 12 mil pessoas, em 17 dias, para uma marcha pelo País em 2005, é uma coisa inédita não apenas na história brasileira como do mundo inteiro. Além disso, o MST criou importantes estratégias. Articulou-se em rede, criou uma estrutura descentralizada, baseada em processos decisórios coletivos. Não existe reforma agrária sem o Estado, assim como é muito difícil o governo promovê-la sem que haja reivindicação, uma demanda organizada. E o MST surge para organizar essa demanda. O movimento contribui para a democratização do País.
CC: Por quê?
MC: O MST vai aonde está a população mais pobre do Brasil e a convida para participar do movimento. O pessoal envolve-se nos acampamentos, aprende sobre os seus direitos, conhece a política do Brasil. Criam-se assim verdadeiras escolas de cidadania. As pessoas de fora entendem essa dinâmica melhor que vários intelectuais do Brasil, que veem uma ocupação de terra como um grande desrespeito ao Estado de Direito. Eles não entendem que a luta pela democratização implica choques desse tipo. Ás vezes é preciso violar certas leis em razão de um princípio maior. Os movimentos sociais não são inimigos, são arquitetos de uma nova ordem jurídica. O movimento operário, por exemplo, foi fundamental para a criação das atuais leis trabalhistas.
CC: E como o Judiciário se porta diante dessas demandas?
MC: O Judiciário, de modo geral, é um grande obstáculo. Não porque as leis são as piores. A lei permite a reforma agrária. O problema é a interpretação. Em boa parte, isso tem relação com a origem de classe dos juízes. Muitos são filhos de grandes fazendeiros, frequentam os mesmos clubes. Também há a questão da formação, que enfatiza certos aspectos da lei, e não outros.
CC: A partir do governo FHC, há uma maior distribuição de terras no Brasil, ainda que sob a perspectiva de uma reforma agrária conservadora, como o senhor define. Há alguma diferença entre a política de FHC e a do governo Lula?
MC: Comparados com os demais presidentes, eles distribuíram mais terra. Fernando Henrique, até pela conjuntura, o massacre de Eldorado dos Carajás, uma mobilização intensa, investiu nisso. Lula, de modo geral, mais ou menos manteve o que FHC fez. Eu tenho uma visão de reforma agrária mais restrita que a do Incra. Eu, por exemplo, excluo dos números da reforma agrária aquilo que é relacionado à regularização fundiária. Também não considero as áreas de reserva extrativista na Amazônia. Sou a favor, mas isso é um outro tipo de política. Excluindo esses dados, o número de assentamentos dos dois é muito semelhante.
CC: Não há nenhuma diferença?
MC: Houve, no governo Lula, a criação de uma série de programas de apoio à reforma agrária, como acesso ao microcrédito, incremento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, aumento da eletrificação rural. Aumentaram os recursos para a agricultura familiar. Nesse sentido, Lula foi menos conservador do que FHC. Por outro lado, Lula assentou muito mais gente na Amazônia e no Norte do Brasil, repetindo um padrão de colonização da época da ditadura.
CC: O Brasil foi capaz de estancar a concentração de terras?
MC: Essa reforma conservadora apenas reduziu o ritmo da concentração de terras, mas não foi capaz de desconcentrar nada. Para isso, seria necessária uma reforma progressista. Mas isso não está em pauta no governo. Está na pauta do MST e de alguns partidos de esquerda. No momento, infelizmente, a disputa é pela sobrevivência dessa reforma conservadora. Ou isso ou nada.
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