domingo, 29 de março de 2009

Feios, Sujos e Malvados

por Adriana Facina (UFF/Observatório da Indústria Cultural)



Se vocês estão a fim de prender o ladrão
Podem voltar pelo mesmo caminho
O ladrão está escondido lá embaixo
Atrás da gravata e do colarinho
O ladrão está escondido lá embaixo
Atrás da gravata e do colarinho

Só porque moro no morro
A minha miséria a vocês despertou
A verdade é que vivo com fome
Nunca roubei ninguém, sou um trabalhador
Se há um assalto à banco
Como não podem prender o poderoso chefão
Aí os jornais vêm logo dizendo que aqui no morro só mora ladrão

Se vocês estão a fim de prender o ladrão
Podem voltar pelo mesmo caminho
O ladrão está escondido lá embaixo
Atrás da gravata e do colarinho
O ladrão está escondido lá embaixo
Atrás da gravata e do colarinho

Falar a verdade é crime
Porém eu assumo o que vou dizer
Como posso ser ladrão
Se eu não tenho nem o que comer
Não tenho curso superior
Nem o meu nome eu sei assinar
Onde foi se viu um pobre favelado
Com passaporte pra poder roubar

Se vocês estão a fim de prender o ladrão
Podem voltar pelo mesmo caminho
O ladrão está escondido lá embaixo
Atrás da gravata e do colarinho
O ladrão está escondido lá embaixo
Atrás da gravata e do colarinho

No morro ninguém tem mansão
Nem casa de campo pra veranear
Nem iate pra passeios marítimos
E nem avião particular
Somos vítimas de uma sociedade
Famigerada e cheia de malícias
No morro ninguém tem milhões de dólares
Depositados nos bancos da Suíça

Se vocês estão a fim de prender o ladrão
Podem voltar pelo mesmo caminho
O ladrão está escondido lá embaixo
Atrás da gravata e do colarinho
O ladrão está escondido lá embaixo
Atrás da gravata e do colarinho
(Vítimas da sociedade – Crioulo Doido e Bezerra da Silva)


A recente cobertura da grande mídia sobre as favelas cariocas têm me chamado atenção. Pauta obrigatória e diária, as favelas aparecem ora como ameaça ecológica, ora como alvo de políticas públicas que são consideradas bem sucedidas e, nesta semana, como focos da violência que se expande pelo asfalto e assusta os moradores de bairros tradicionais da Zona Sul. Em todas as notícias, muitas mentiras são continuamente reiteradas, demonstrando, ao mesmo tempo, uma intenção ideológica clara de criminalizar a população favelada e defender soluções coercitivas para seu controle (vide as ocupações policiais do Dona Marta e da Cidade de Deus), bem como um olhar de classe média que informa a cobertura jornalística. Os repórteres e editores possuem um estranhamento tão profundo em relação ao mundo dessas populações que raramente aguçam ouvidos e olhos para perceber essas realidades sob outros ângulos. Desse modo, vários clichês são repetidos como verdades inquestionáveis.


A própria idéia de crime organizado deve ser vista com cuidado. Se existe crime organizado, certamente ele não está nas favelas. As facções são baseadas em alianças frágeis, muito dependentes do perfil dos “donos do morro”, autoridades sempre mais ou menos efêmeras que ditam as regras e definem o ambiente das comunidades. De acordo com isso, uma mesma favela pode ter um clima mais neurótico ou mais tranqüilo. Outros fatores também entram aí, como a ameaça de invasão policial ou miliciana ou mesmo de outra facção. Mesmo dentro de um mesmo comando, há rivalidades e invasões por grupos rivais em geral são gestados dentro do próprio grupo que está no comando da favela invadida, por aqueles que são considerados “traíras”. Estes são movidos pela ambição de tomar o lugar do chefe. Essa instabilidade demonstra que o crime dentro das favelas está longe de ser organizado, ainda que existam hierarquias, regras, condutas que estruturam esses coletivos.


Organizada é a chegada da droga nas favelas. Recentemente, foi veiculado na imprensa que uma mesma oranização vende a droga para facções rivais do Rio. Essas drogas chegam em fluxo contínuo e mesmo em períodos de “guerra” continuam a ser vendidas. Ao argumento de que o crime realmente organizado está fora das favelas, já que nelas não se produzem entorpecentes e nem armas, se responde com a denúncia da existência de um suposto laboratório de refino de cocaína na Rocinha, o que os moradores da localidade negam, e que na própria mídia aparece como sendo um local onde se mistura cocaína pura a farinha ou outras substâncias para ampliar os lucros de quem a vende. “Malhar” cocaína é bem diferente de refiná-la, processo complicado que, ao que parece, não é a especialidade brasileira na divisão do trabalho que apóia o comércio internacional da substância.


Organizada é a venda das armas que vão parar nas mãos daqueles que são responsáveis pelo varejo da droga. O arsenal que qualquer um que entra nas favelas onde há venda de drogas pode ver chega em parte pelas mãos das próprias forças estatais. Não são poucas as histórias de seqüestro de fuzis, com pedido de resgate para devolvê-los, feitos por aqueles que se dizem ao lado da lei. Organizada também é a produção dessas armas e a sua distribuição pelo mundo. Nenhuma das grandes armas que se vêm nas favelas: AR-15s, AKs, G3, etc são produzidas no Brasil. São empresas multinacionais, totalmente legalizadas, que fabricam essas armas massivamente, independentemente de seus países estarem ou não em guerra. Essas armas são fabricadas sem controle, em uma quantidade que, para tornar sua comercialização lucrativa, precisa de grandes e pequenas guerras sendo fomentadas cotidianamente no mundo. Nossa “guerra particular” é fundamental nisso e o proibicionismo em relação à venda e consumo de drogas é um combustível essencial. Mais armas pros comerciantes, mais armas para o Estado combater os comerciantes. Dinheiro que poderia ser investido na saúde, educação, cultura, emprego para de fato combater as causas da violência. Hoje o que se gasta para combater o comércio e o consumo das substâncias proibidas é mais do que se gastaria em saúde pública para tratar os drogadictos caso seu uso fosse liberado.


Organizada também é a entrada do dinheiro ilegal do tráfico internacional de drogas e armas no sistema financeiro. Os bancos, instituições financeiras do mundo “legal”, recebem esse dinheiro e ajudam assim a limpá-lo, permitindo que ele vá alimentar legalidades e ilegalidades que são parte de uma mesma coisa sob o capitalismo financeirizado. Dito de outra maneira, não é possível existir tráfico de drogas, seja o grande tráfico internacional seja o varejo das favelas, sem a conivência das instituições financeiras.


Isso demonstra o quanto é falsa e mistificadora a culpabilização dos usuários de drogas pela violência gerada pela presença e uso de armas de grosso calibre por toda a cidade. O consumo de maconha, por exemplo, é histórico entre as camadas populares de nossa cidade, compondo estilos de vida e assumindo sentidos culturais negados pelo proibicionismo. Quanto à classe média, tal consumo se difundiu sobretudo no esteio da contracultura, a princípio como contestação à sociedade de consumo e depois adquirindo novos significados, mas sempre com algum resquício de rebeldia. No caso dos chamados viciados, sobretudo em pó e crack, são pessoas que merecem tratamento, pois são portadores de uma doença que deve ser vista como problema de saúde pública e não como resultado de falhas de caráter. Dizer que esses são os vilões que estão por trás dos muitos tiros que foram trocados na esquina da Toneleiros com Santa Clara é uma maneira confortável de simplificar as coisas, desresponsabilizar o Estado e sua fracassada política de combate ao crime e obscurecer a importância daqueles que verdadeiramente lucram com essas “guerras” que aumentam a venda de armas e jornais.


Algumas perguntas ficam sem respostas. Por que, por exemplo se elegem as favelas como o palco do combate ao comércio de drogas? Todos sabem que o comércio e consumo de substâncias ilegais correm soltos em boates freqüentados pela classe média e classe média alta carioca e no entanto não existem registros de “operações” realizadas nessas localidades. Nem em condomínios de luxo onde se consomem drogas e que também invadem áreas de mata atlântica, poluem lagoas e mares numa escala muito mais ameaçadora do que os barracos das favelas. Por que os inimigos da sociedade foram eleitos entre aqueles para quem o comércio varejista de drogas é emprego, é alternativa de uma vida sem muitas alternativas? A grande maioria dos jovens que hoje empunham as armas nas favelas não têm acesso à educação de qualidade, à saúde, ao emprego digno, à equipamentos culturais públicos ou privados ( muitos jamais foram ao cinema, por exemplo). São esses os inimigos da sociedade?


Em meio a essas reflexões, lembrei de uma frase de Bertolt Brecht: “Aquele que desconhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e a chama de mentira é um criminoso.” Brechtianamente, cabe perguntar: De quantos crimes cotidianos é feito o combate ao crime no Rio de Janeiro?

Quando a caneta extermina


As charges, recursos de manifestação de idéias, que na ditadura militar incomodavam tanto aos poderosos, hoje não têm se contraposto aos fundamentos autoritários e discriminatórios da política de segurança pública do Estado. Se outrora o inimigo número um dos chargistas era o Estado autoritário, hoje, a maior parte das “críticas” que vemos nas charges do circuito jornalístico comercial atinge, no máximo, o caráter moralista de exigir o aprofundamento e a radicalização da fracassada política de extermínio que já está aí.

Na “Charge do Dia”, publicada em 25 deste mês no Jornal do Brasil, Ique, o autor, abre mão da característica essencial das charges, instrumentos historicamente ácidos e críticos aos abusos do poder, e faz coro com os elementos basilares de sustentação da política de extermínio em curso no Rio. Nela, vemos casas populares típicas das favelas cariocas (os chamados “barracos”), chegando até a base de um Cristo depredado e amordaçado, no topo do Corcovado, por “bandidos” armados. A péssima (mas já recorrente) associação entre favela, crime, depredação, mordaça e violência está feita de forma grosseira, criminalizante, muito superficialmente fundamentada.

Trata-se do mesmo raciocínio que leva muitos setores sociais, que desconhecem a realidade da favela, a legitimar a política de enfrentamento, protagonizada pela polícia que mais mata e morre no mundo (quase todos pobres, diga-se “de passagem”). Notem que na charge não há moradores honestos, apenas os bandidos armados e os “barracos” (com seus traços típicos, como as telhas de amianto, a caixa d’água e a antena de TV). A charge sugere claramente que os “traficantes” estão lá porque a "favela cresceu e chegou até lá", ou seja, a presença de bandidos armados está exclusivamente associada à chegada da favela ao Corcovado. A violência está estampada na imagem, apesar de não haver nenhuma menção à Polícia ou ao Estado, apenas à favela. Aliás, a charge faz menção justamente à ausência da polícia, como se condenasse o Estado apenas pela pouca (!!!) repressão aos “favelados”. Não se sabe de onde vêm as armas nem porque elas estão ali, apenas se diz que a violência chegou junto com os pobres. E os pobres da charge, personagens desta favela, são os únicos responsáveis pela insegurança pública, pelas depredações e são todos bandidos perigosos. Este é exatamente o ponto de vista da classe média ignorante, o que permite dizer que, infelizmente, Ique apenas reproduziu o senso-comum, desconsiderando o ponto de vista de quem de fato tenta-se amordaçar em nossa cidade: os moradores das favelas.

Dizem por aí que as favelas são as principais responsáveis pela depredação ambiental. Mentira! O que deveria estar sendo divulgado pelos jornais (e não está) é que a Lagoa Rodrigo de Freitas é imunda em função dos esgotos dos ricos, por exemplo. Deveriam fazer charges sobre o consumismo, o maior causador de depredação ambiental do mundo, e que os ricos são os principais praticantes e estimulantes desse hábito. A sociedade precisa de charges que denunciem que a própria expansão das favelas não é de responsabilidade dos pobres, mas sim de uma política urbana de concentração de recursos públicos, ausência de política de moradia, péssima qualidade e altos preços dos transportes públicos e à expulsão dos pobres pelos ricos de suas áreas originais de moradias. Ique deveria usar o seu talento para mostrar que toda essa política urbana carioca sempre foi tocada e decidida pelos ricos, não pelos “favelados”. Precisamos de charges que — ao invés de depreciar e discriminar as favelas — esclareçam que o processo histórico da “favelização” nunca foi uma ação ignorante, mas sim uma resistência popular inteligente à ausência total de políticas públicas para a classe trabalhadora.

Nossa cidade vive problemas crônicos, diferentes dos apresentados sistematicamente pela política palaciana, pela mídia comercial e pela maioria de seus chargistas. Não são os camelôs do centro que me assustam, muito menos o gatonet - que garante entretenimento aos pobres depois de um dia inteiro de trabalho – o principal problema social pelo qual passamos. Temos no Rio o metrô mais caro do Brasil, os ônibus são péssimos e suas passagens aumentaram quase o dobro da inflação. O valor da passagem do trem foi o que mais aumentou nos últimos anos e, ironicamente, é o que atende à parcela populacional com menor renda. Não à toa a população em situação de rua cresce no Rio (e esse é um problema grave de moradia, não de violência como a mídia costuma tratar). Os bens públicos de lazer e cultura se concentram principalmente na Zona Sul sociológica. E o Estado age de forma discriminatória de acordo com o território em que está. Para os pobres, a abordagem policial é violenta, enquanto que, nas áreas mais abastadas da cidade, a abordagem é mais “civilizada” e garantidora de direitos. É nesse contexto que se torna fundamental a ação dos movimentos populares para reivindicar políticas eficazes de distribuição de renda, controle dos transportes “públicos”, distribuição dos recursos destinados à saúde, educação, lazer, cultura e esportes, democratização das decisões políticas, entre outros. E, pelo visto, a democratização dos meios de comunicação não pode ficar fora da lista de objetivos a serem alcançados na luta contra a criminalização dos pobres e por uma cidade mais igualitária.

Enquanto a imagem da favela for associada à idéia de criminalidade, continuaremos vendo pobres matando pobres, ao som dos aplausos da classe média, que não abre mão de ouvir seu samba ou seu funk no final de semana, tomando sua cervejinha com os amigos enquanto reproduz as idéias que lêem nas manchetes dos jornais. A história já nos mostrou que o dever de todo artista num momento como esse é revelar a realidade por detrás do discurso oficial de modo a permitir uma mudança na forma como as pessoas veem isso tudo.


*Guilherme Pimentel - Militante do Movimento "Direito Pra Quem?" e admirador das obras dos chargistas Henfil, Latuff e Diego Novaes, entre outros.

terça-feira, 24 de março de 2009

Há 40 anos, ditadura mostrava seus dentes para a Universidade

Enquanto setores importantes que apoiaram a ditadura estão promovendo uma revisão histórica que pretende qualificá-la como um período de “pequenos excessos”, uma “ditabranda”, como querem os editores da Folha de São Paulo , as universidades pouco se engajam na recuperação da história da intervenção governamental na vida acadêmica.

Por Roberto Leher* - Data: 16/03/2009 - Agência Carta Maior

A edição do Decreto 477, em 26 de fevereiro de 1969, é um acontecimento que tem de ser retirado do esquecimento. Enquanto setores importantes que apoiaram a ditadura empresarial-militar estão promovendo uma revisão histórica que pretende qualificar a ditadura como um período de “pequenos excessos”, uma “ditabranda”, como querem os editores da Folha de São Paulo , as universidades pouco se engajam na recuperação da história da intervenção governamental na vida acadêmica brasileira do período e na análise de suas consequências para a universidade do presente.

A ingerência do aparato governamental na universidade não foi pontual, episódica, ocorrendo no contexto de um amplo programa de (contra) reforma universitária que, por sua vez, expressava o empenho dos setores dominantes em associá-la ao seu projeto de desenvolvimento em conformidade com o imperialismo. A abrangência e profundidade dos efeitos da ação governamental sobre a universidade não seriam tão relevantes se a coerção tivesse sido unilateral, partindo dos aparatos coercitivos para as instituições. A efetividade da ação ditatorial não seria possível sem a participação de membros da comunidade acadêmica que atuaram em sinergia com os tecnocratas do governo empresarial-militar e com a assessoria da United States Agency for International Development (USAID).

Embora no texto da lei da chamada reforma universitária de 1968 (Lei 5540/68) a preocupação com a segurança não componha a sua nervura central, o Decreto 477/69 comprova que a segurança teve um peso considerável na reforma concreta das universidades. Os estudos históricos comprovam que a USAID não tinha motivações acadêmicas, embora alguns de seus agentes pudessem crer nessa idéia ingênua. Sua preocupação fundamental era com a doutrina da segurança, leia-se, com o anticomunismo, como condição de que o país seguiria na órbita do imperialismo estadunidense.

O uso sistemático da repressão nas universidades, e no conjunto da vida social do período, não foi uma característica exclusiva da ditadura no Brasil. A repressão contra os inimigos internos foi uma prática difundida em quase todo continente como doutrina pela Escola das Américas, School of the Americas (SOA), um dos principais think tanks de formação das lideranças militares envolvidas nas ditaduras e mais especificamente nos aparatos repressivos. Os militares foram qualificados por W.W. Rostow, em seu "As etapas do desenvolvimento econômico: um manifesto não comunista", como o setor mais propenso a liderar o ‘arranque’ dos países atrasados para o desenvolvimento.

Assim, não foi apenas em 1968 que os escrúpulos das frações burguesas locais e dos militares a elas associados foram “jogados às favas”, como disse um ministro do regime. A partir do ato fundador da ditadura empresarial-militar, com a deposição quatro anos antes do presidente constitucionalmente eleito, o cenário de terror estava esboçado. A partir daí a escalada da violência por parte do Estado não parou de crescer até o aprofundamento da crise de hegemonia que levou ao fim do regime, a partir da segunda metade dos anos 1970. Nesse sentido, a edição do AI-5 consolida um marco jurídico ou, nos termos de um dos organizadores do regime, o então ministro da Educação e Cultura Jarbas Passarinho, um teorema que organiza a política do Estado a partir do uso sistemático da violência.

Necessitando da universidade para garantir a capacidade técnico-científica do Estado e das empresas, mas não tendo uma hegemonia prévia sobre ela, a ditadura empresarial-militar se viu diante de um dilema: se fortalecesse a universidade como instituição pública e autônoma poderia ter de pagar o preço de robustecer uma instituição que se voltaria política e academicamente contra o regime e o processo de modernização conservadora por ele conduzido; mas, de outra parte, sem apoiar a pesquisa e a formação de quadros técnicos e científicos de maior sofisticação não lograria alcançar os objetivos do padrão de acumulação.

A primeira solução para esse dilema foi o recrudescimento da repressão no ambiente universitário. Dois meses e meio após a edição do AI-5, o staff governamental, assessorado pelos organismos de Washington, editou o novo decreto destinado especificamente à repressão nas instituições de ensino. Se o AI-5 era o teorema, o Decreto 477 era o corolário do AI-5 nas universidades. Seus efeitos foram devastadores para as instituições, a ciência, a cultura e para a vida de centenas de professores e jovens que tiveram suas trajetórias acadêmicas ceifadas. Os efeitos do decreto não se restringiram aos diretamente atingidos.

A doutrina da segurança capilarizou-se por todos os poros da vida acadêmica, sendo assimilado por Estatutos (UnB), por congregações que elaboram listas com os docentes a serem afastados (vide "A Questão da USP", de Florestan Fernandes), passando pelas tenebrosas assessorias de segurança criadas no interior das instituições para identificar os subversivos. Complementarmente, o Estado apertou o cerco contra as universidades ao determinar que somente poderiam realizar concursos os candidatos que tivessem um atestado de antecedentes ideológicos certificado pela famigerada Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS).

É preciso afastar a visão conveniente de que a repressão sobre a vida acadêmica foi apenas um ato de autoritarismo militar, nascido na caserna. Longe disso. Desde antes de 1964, entidades empresariais como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) já manifestavam inquietação com os rumos das universidades, tidas como demasiadamente esquerdistas e pouco abertas à modernização vis-à-vis ao imperialismo. No ano do golpe, um dos teóricos da Aliança para o Progresso, Scheman, foi mais claro ao afirmar que o problema era a influência marxista, considerada perigosa para os valores do mundo livre e que, por isso, teria de ser extirpada das universidades para proteger a juventude e, sobretudo, para impedir que os movimentos de resistência à ditadura empresarial-militar recebessem suporte acadêmico.

Os programas da Aliança para o Progresso e da USAID subsidiaram a edição de livros e a organização de bibliotecas, por meio da United States Information Agency (USIA), objetivando oferecer um contraponto ao marxismo; mas o problema, conforme os analistas do IPES, do governo e do Departamento de Estado, seguia se agravando, mesmo após o massacre “exemplar” da UnB relatado em pormenor pelo físico Roberto Salmeron . Concretamente, o núcleo dirigente da ditadura empresarial-militar apostou que uma forte repressão sobre a universidade seria uma ação eficaz para domesticá-la à ordem estabelecida, tornando-a funcional ao regime. Veremos que essa estratégia é significativamente ajustada (e não abandonada) posteriormente, quando o governo percebe que poderia se valer de meios mais eficazes para subordinar as universidades.

O Decreto 477/69
O decreto dispõe sobre – aparentemente – inofensivas infrações disciplinares praticadas por professores, alunos e funcionários de estabelecimentos de ensino públicos e privados. Mas ao defini-las, em seu primeiro artigo, o seu caráter coercitivo torna-se muito evidente: comete infração disciplinar os que “aliciam” ou incitam paralisações ou que participem das mesmas. O mesmo vale para os que organizam atos, passeatas, desfiles, comícios ou que deles participem, e para os que conduzam, elaborem, confeccionem, imprimam, guardem ou distribuam “material subversivo de qualquer natureza”. Não satisfeito pela amplitude da caracterização dos atos subversivos, define que comete infração também aqueles que usam as dependências do estabelecimento de ensino para fins de subversão ou para praticar ato contrário à moral ou à ordem pública. Enfim, tudo era passível de ser classificado como infração disciplinar.

A partir desse largo escopo o decreto estabelece as punições. A assimetria entre os possíveis fatos geradores e o rigor das punições descumpre qualquer princípio jurídico de razoabilidade.

No caso de ser um docente ou funcionário a pena poderia ser de demissão ou dispensa da instituição (a regra-geral) com o agravante de não mais poder ser contratado por outra instituição da mesma natureza por cinco anos. Ou seja, o docente era demitido e não poderia exercer a profissão por longos cinco anos . No caso de ser aluno, seria desligado e impedido de se matricular em qualquer estabelecimento de ensino por três anos. Se fosse bolsista perderia a bolsa e não poderia obter nova bolsa por longos cinco anos, impedindo a defesa de teses, dissertações e a conclusão de pesquisas.

O rito da punição era sumário. Vinte dias, improrrogáveis. E seria conduzido por indicado do dirigente da instituição que, com isso, tornariam-se cúmplices voluntários ou não da repressão. Caso existisse a suspeita de crime caberia ao dirigente da instituição providenciar a instauração de inquérito policial.

A onda de repressão advinda do Decreto 477/69 confirma a sanha repressora que se abateu sobre a universidade. A perseguição ideológica era ao mesmo tempo externa, vinda dos aparatos de segurança da ditadura empresarial-militar, e interna, proveniente das assessorias de segurança, de departamentos, congregações e colaboradores individuais. As listas dos subversivos foram elaboradas às escondidas e também abertamente. O terror foi instalado na vida universitária.

Após o afastamento de 80% dos professores da UnB e em diversas outras universidades, torna-se evidente que essa repressão desenfreada colocaria em risco a universidade funcional ao regime. Como resolver essa difícil equação?

Subordinação estrutural das universidades ao Estado e aos interesses particularistas do capital
O governo empresarial militar resolveu esse problema privando as universidades da autonomia de gestão financeira, em especial de verbas para a pesquisa e, ainda, estrangulando crescentemente os recursos chamados de “balcão” – em que o pesquisador apresenta um projeto independentemente de linhas de pesquisa e o submete a avaliação do mérito científico. A partir do início da década de 1970, o aparato de C&T foi deslocado para o Ministério do Planejamento, então o ministério mais poderoso na condução da modernização conservadora, desidratando as verbas de custeio de pesquisa das universidades e tornando-as reféns dos editais heteronômicos.

Uma vez na casamata governamental os recursos passaram a ser liberados por meio de editais que expressavam justamente as prioridades do regime. Professores universitários próximos ao governo ocuparam postos relevantes nesse sistema, criando a aparência de que a comunidade acadêmica ainda tinha voz ativa na política de ciência e tecnologia. A avaliação do mérito dos projetos, vis-à-vis às prioridades do regime, passa a ser feita inclusive por docentes que, embora não pudessem ser considerados ativos apoiadores, aceitaram o lugar nos conselhos em “nome da ciência”. Com isso, foi sendo consolidada uma heteronomia fundamental. E a intervenção governamental nas universidades pôde se dar não apenas com base na força, mas também por meio dos “neutros” editais externos definidos em conformidade com as demandadas do regime ditatorial.

Os setores acadêmicos que apoiaram essa reforma foram retribuídos pela ditadura, usufruindo bolsas, recursos para seus laboratórios e nomeações para a burocracia do aparato de C&T ampliado pelo regime. É indubitável que nesse áspero período da história brasileira ocorreu uma expansão sem precedentes das atividades de pesquisa articuladas com a pós-graduação e com as linhas de investigação preconizadas pelos órgãos de fomento. De fato, não é possível ignorar a extraordinária taxa da expansão da pós-graduação no período da ditadura empresarial militar (1964-1985): o crescimento foi multiplicado por 26, passando de 41 programas em 1965 para 1063 em 1985. Concretamente, a ditadura viabilizou a extensão da pesquisa no âmbito universitário, mas o custo para a autonomia universitária foi alto.

Como lembra Florestan Fernandes nenhuma tirania conseguiu domar o homem. Exatamente por isso as universidades continuam. A resistência, que de inicio foi localizada, passou a ser um sentimento e uma prática da maioria do corpo docente. Muitos professores e estudantes afastados pelo AI-5 e pelo Decreto 477/69 que não foram executados ou desaparecidos seguiram na batalha das idéias, entre os quais destacou-se o próprio Florestan. Outros muitos se refugiaram em seus laboratórios e salas de aula, mas fizeram desses espaços loci de produção original de conhecimento. Nos subterrâneos da liberdade, a UNE voltou a se rearticular, as Associações de Docentes que posteriormente deram origem a ANDES se forjaram como espaços de lutas e resistências, enfrentando questões universitárias cruciais. As reuniões anuais da SBPC fortaleceram os espaços de debates, permitindo questionamentos de fundo ao modelo econômico-social imposto pela coalizão de classes que sustentou a ditadura. As greves operárias no ABC, destacando-se, antes, a de Osasco em pleno ano de 1968, colocaram a classe operária em movimento.

As contradições no seio da coalizão dominante se agudizaram com a crise dos anos 1970. Com o golpe dos juros imposto pelos EUA, em 1979, pilares da ditadura se romperam, conformando o cenário devastador da Crise da Dívida de 1982. No contexto da crise de hegemonia não foi possível aos trabalhadores, por debilidade teórica e organizativa, se afirmarem como os construtores da nova sociedade. A chamada transição foi urdida pelos teóricos do autoritarismo e pôde ser realizada pelo alto. A anistia geral não foi a reivindicada pelos movimentos sociais e pelas entidades democráticas, mas a desejada pelos que torturaram e mataram e que, com a lei da anistia, criaram um marco jurídico que os protegeu das imprescindíveis (e imprescritíveis) punições. A primeira eleição presidencial pós-ditadura foi indireta e a constituinte não foi exclusiva e plenamente soberana.

Quanto à universidade, os efeitos do Decreto 477/69 não foram encerrados com a sua revogação em 1979. De fato, o Decreto foi parte de um processo mais amplo de (contra) reforma universitária (Lei 5540/68) e de redefinição da política de ciência e tecnologia nos marcos do II Plano Nacional de Desenvolvimento, que deixou feridas abertas até os dias de hoje. A naturalização de que o que é dado a pensar e o que é relevante ou não na vida acadêmica é um assunto extra-universitário, da alçada dos órgãos de fomento e dos aparatos de avaliação do governo ou, mais recentemente, de conselhos que congregam empresários, é a mais profunda dessas feridas.

Contudo, o modelo de consentimento forçado das universidades ao Estado e aos interesses particularistas do capital, introduzido pela ditadura, não foi revisto. Ao contrário, ganhou novos contornos com a lei de inovação tecnológica e com as fundações ditas de apoio privadas que criaram enclaves privados mercantis nas universidades públicas. Igualmente, a idéia de que a expansão massiva das matrículas deveria ser privada (e que a própria educação superior é um serviço a ser realizado no mercado) assumiu muito maior escopo após meados dos anos 1990, em particular com a criação da parceria público-privada que caracteriza o Programa Universidade para Todos (ProUni). Embora as políticas sejam encaminhadas majoritariamente por meios não explicitamente coercitivos, a repressão não está descartada. As entidades que denunciam, criticam e resistem a comodificação da educação não estão livres da violência estatal. A suspensão do registro sindical do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior pelo Ministério do Trabalho comprova isso.

Alternativas
As lutas docentes, estudantis e de entidades acadêmicas das três últimas décadas, somadas ao empenho pessoal de importantes frações do corpo universitário, contribuíram fortemente para a constituição de um conjunto de universidades públicas que é singular entre os países capitalistas dependentes. Milhares de dissertações e teses enfrentam questões relevantes para superar os grandes problemas nacionais, outras tantas antecipam problemas e questões de modo original, obrigando a sociedade a repensar seu futuro, como no caso do modelo agrícola baseado no uso intensivo de agrotóxicos e transgênicos ou no aquecimento global.

A universidade é indispensável também para impedir o revisionismo histórico a serviço de uma saída conservadora da crise. A tese de que a ditadura empresarial-militar foi uma inocente “ditabranda” é parte dessa ofensiva para silenciar a história, legitimando as ações da direita que ontem editou o decreto 477/69.

Após ser triturada pela ditadura empresarial-militar, a universidade do presente é uma instituição em que as tensões entre o público e o privado pulsam agudamente, mas não se tratam de pólos em antípoda equilibrados. O avanço da esfera privado-mercantil no cotidiano das universidades é inequívoco. A reversão desse quadro, objetivando que o público se sobreponha ao privado-mercantil, exige rápidos avanços na desmercantilização radical da vida social, o que somente é possível pelas lutas anticapitalistas.

A profunda crise capitalista que transtorna o mundo abre novas possibilidades de mudança histórica para além do neokeynesianismo e do neodesenvolvimentismo, promessas inviáveis no capitalismo de hoje, como nos mostram David Harvey, István Mészáros, entre outros. Os impasses da humanidade atualizam o debate sobre a estratégia para lograr uma sociedade além do capital. No processo histórico de busca de alternativas a universidade tem um papel crucial, como se depreende das lutas sociais que se difundem em todos os recantos do planeta. O pessimismo da razão, a saber, a razão crítica, é uma dimensão indispensável do otimismo da vontade. A universidade é potencialmente subversiva, pois, como lembra Marx, a teoria pode ser uma poderosa força transformadora: converte-se em força material quando penetra nas massas.


*Professor da Faculdade de Educação da UFRJ e de seu do Programa de Pós-Graduação, pesquisador do CNPq, coordenador acadêmico do Outro Brasil (Instituto Rosa Luxemburgo) e do Observatório Social da América Latina- Brasil do CLACSO

quarta-feira, 18 de março de 2009

Lombroso não morreu, foi ao inferno e voltou

por Ítalo Pires Aguiar*


A famosa revista eletrônica chamada "fantástico" recentemente apresentou a polêmica sobre pesquisadores da PUC-RS, que ingenuamente querem "conhecer um pouco melhor como a estrutura cerebral pode, eventualmente, estar envolvida em processos que geram violência", a fim de verificar se a velha suspeita "de que os homicidas têm partes do cérebro atrofiadas" é verdadeira.

Em sentido contrário psicólogos, educadores, advogados, enfim, essa corja que vive falando em Direitos Humanos, escreveram agressivo manifesto contra os paladinos da ciência, acusando eles de serem nada mais que legitimadores das "velhas práticas de extermínio e exclusão".


Não se engane com o tom jocoso dos primeiros parágrafos, esse pequeno texto é contra a nada nobre iniciativa dos médicos gaúchos. Colaboramos coma tese de que a revitalização das pesquisas italianas do século XIX, que fundamentaram diretamente as atrocidades nazistas, guardadas as devidas atualizações, se antes Lombroso media o crânio, hoje ele usa ressonância magnética, nada mais é que um instrumento viciado para legitimação de práticas excludentes e exterminadoras vigentes em todos os grandes conglomerados urbanos, onde a questão da violência parece ser mais latente.


Os instrumentos de pesquisa se modernizaram, todavia, o objeto continua o mesmo, pois os pesquisados serão 50 jovens infratores que cumpre medida de segurança na antiga FEBEM.


Poderíamos elencar uma serie de argumentos contra a pesquisa, tal como de que o meio de pesquisa, em regra, supera seus objetivos, ou seja, por mais que a intenção seja a de medicar os tendenciosos ao crime, essa pesquisa resultará na categorização de indivíduos, ou seja, legitimará a exclusão social, característica nuclear do modelo de sociedade em que vivemos, mas a argumentação nesse sentido pode dar ao leitor a falsa impressão de que acreditamos em resultados imparciais. Portanto, buscaremos deslegitimar tal procedimento através da verificação de como os jovens chegaram ao estabelecimento de execução penal.

Não é preciso estudar a fundo a teoria criminológica do Labeling Aprouch, para verificar que a funcionalidade do sistema penal, desde a agência legislativa, passando pela policial, judiciária, e por fim, a de execução penal, é seletiva e estigmatizante, basta ter bom senso, qualidade rara em época de consenso.

Dentre a infinidade de pessoas que cometem delitos – pessoas de todas as raças, credos, situações sociais e sexo – apenas determinada parcela é alvo de processo de criminalização, sem querer entrar no mérito da criminalização secundária, onde o etiquetado assume o papel a ele imposto.

São exatamente os marginalizados sociais as pessoas passíveis da atuação da criminalização primária, na realidade das grandes capitais brasileiras são pretos, pobres, ou moradores de comunidades carentes, eventualmente, um rico é preso para dar maior veracidade ao mito da imparcialidade.

Sendo assim, qualquer pesquisa que tenha como objeto indivíduos que previamente já sofreram rigorosa seleção está fadada ao fracasso, pois esses não representam os que cometem crimes bárbaros, até mesmo porque todos somos criminosos em potencial, basta estar vivo, mas tão somente os selecionados pelo sistema.



*Ítalo é Estudante de Direito da UERJ.