domingo, 29 de março de 2009

Quando a caneta extermina


As charges, recursos de manifestação de idéias, que na ditadura militar incomodavam tanto aos poderosos, hoje não têm se contraposto aos fundamentos autoritários e discriminatórios da política de segurança pública do Estado. Se outrora o inimigo número um dos chargistas era o Estado autoritário, hoje, a maior parte das “críticas” que vemos nas charges do circuito jornalístico comercial atinge, no máximo, o caráter moralista de exigir o aprofundamento e a radicalização da fracassada política de extermínio que já está aí.

Na “Charge do Dia”, publicada em 25 deste mês no Jornal do Brasil, Ique, o autor, abre mão da característica essencial das charges, instrumentos historicamente ácidos e críticos aos abusos do poder, e faz coro com os elementos basilares de sustentação da política de extermínio em curso no Rio. Nela, vemos casas populares típicas das favelas cariocas (os chamados “barracos”), chegando até a base de um Cristo depredado e amordaçado, no topo do Corcovado, por “bandidos” armados. A péssima (mas já recorrente) associação entre favela, crime, depredação, mordaça e violência está feita de forma grosseira, criminalizante, muito superficialmente fundamentada.

Trata-se do mesmo raciocínio que leva muitos setores sociais, que desconhecem a realidade da favela, a legitimar a política de enfrentamento, protagonizada pela polícia que mais mata e morre no mundo (quase todos pobres, diga-se “de passagem”). Notem que na charge não há moradores honestos, apenas os bandidos armados e os “barracos” (com seus traços típicos, como as telhas de amianto, a caixa d’água e a antena de TV). A charge sugere claramente que os “traficantes” estão lá porque a "favela cresceu e chegou até lá", ou seja, a presença de bandidos armados está exclusivamente associada à chegada da favela ao Corcovado. A violência está estampada na imagem, apesar de não haver nenhuma menção à Polícia ou ao Estado, apenas à favela. Aliás, a charge faz menção justamente à ausência da polícia, como se condenasse o Estado apenas pela pouca (!!!) repressão aos “favelados”. Não se sabe de onde vêm as armas nem porque elas estão ali, apenas se diz que a violência chegou junto com os pobres. E os pobres da charge, personagens desta favela, são os únicos responsáveis pela insegurança pública, pelas depredações e são todos bandidos perigosos. Este é exatamente o ponto de vista da classe média ignorante, o que permite dizer que, infelizmente, Ique apenas reproduziu o senso-comum, desconsiderando o ponto de vista de quem de fato tenta-se amordaçar em nossa cidade: os moradores das favelas.

Dizem por aí que as favelas são as principais responsáveis pela depredação ambiental. Mentira! O que deveria estar sendo divulgado pelos jornais (e não está) é que a Lagoa Rodrigo de Freitas é imunda em função dos esgotos dos ricos, por exemplo. Deveriam fazer charges sobre o consumismo, o maior causador de depredação ambiental do mundo, e que os ricos são os principais praticantes e estimulantes desse hábito. A sociedade precisa de charges que denunciem que a própria expansão das favelas não é de responsabilidade dos pobres, mas sim de uma política urbana de concentração de recursos públicos, ausência de política de moradia, péssima qualidade e altos preços dos transportes públicos e à expulsão dos pobres pelos ricos de suas áreas originais de moradias. Ique deveria usar o seu talento para mostrar que toda essa política urbana carioca sempre foi tocada e decidida pelos ricos, não pelos “favelados”. Precisamos de charges que — ao invés de depreciar e discriminar as favelas — esclareçam que o processo histórico da “favelização” nunca foi uma ação ignorante, mas sim uma resistência popular inteligente à ausência total de políticas públicas para a classe trabalhadora.

Nossa cidade vive problemas crônicos, diferentes dos apresentados sistematicamente pela política palaciana, pela mídia comercial e pela maioria de seus chargistas. Não são os camelôs do centro que me assustam, muito menos o gatonet - que garante entretenimento aos pobres depois de um dia inteiro de trabalho – o principal problema social pelo qual passamos. Temos no Rio o metrô mais caro do Brasil, os ônibus são péssimos e suas passagens aumentaram quase o dobro da inflação. O valor da passagem do trem foi o que mais aumentou nos últimos anos e, ironicamente, é o que atende à parcela populacional com menor renda. Não à toa a população em situação de rua cresce no Rio (e esse é um problema grave de moradia, não de violência como a mídia costuma tratar). Os bens públicos de lazer e cultura se concentram principalmente na Zona Sul sociológica. E o Estado age de forma discriminatória de acordo com o território em que está. Para os pobres, a abordagem policial é violenta, enquanto que, nas áreas mais abastadas da cidade, a abordagem é mais “civilizada” e garantidora de direitos. É nesse contexto que se torna fundamental a ação dos movimentos populares para reivindicar políticas eficazes de distribuição de renda, controle dos transportes “públicos”, distribuição dos recursos destinados à saúde, educação, lazer, cultura e esportes, democratização das decisões políticas, entre outros. E, pelo visto, a democratização dos meios de comunicação não pode ficar fora da lista de objetivos a serem alcançados na luta contra a criminalização dos pobres e por uma cidade mais igualitária.

Enquanto a imagem da favela for associada à idéia de criminalidade, continuaremos vendo pobres matando pobres, ao som dos aplausos da classe média, que não abre mão de ouvir seu samba ou seu funk no final de semana, tomando sua cervejinha com os amigos enquanto reproduz as idéias que lêem nas manchetes dos jornais. A história já nos mostrou que o dever de todo artista num momento como esse é revelar a realidade por detrás do discurso oficial de modo a permitir uma mudança na forma como as pessoas veem isso tudo.


*Guilherme Pimentel - Militante do Movimento "Direito Pra Quem?" e admirador das obras dos chargistas Henfil, Latuff e Diego Novaes, entre outros.

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