sábado, 6 de dezembro de 2008

A Saga dos Quilombolas

O direito ao reconhecimento do território quilombola está consagrado na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e foi incorporado pela Constituição brasileira de 1988 em seu Art. 68, do Ato das Disposições Transitórias. O dispositivo garante o direito à aquisição dos títulos de propriedade referentes a estas terras, mas não estabelece o procedimento, ficando este a cargo de regulamentações infraconstitucionais.

A primeira regulamentação veio em 1995, através da Portaria 307, que vigorou até 1999, quando a competência da titulação foi delegada ao Ministério da Cultura. Essa regulamentação permitiu a titulação de 19 terras quilombolas. No entanto, em 2001, vem o primeiro balde de água fria. O Decreto 3.912, de Fernando Henrique Cardoso, restringiu a possibilidade de aquisição dos títulos às comunidades remanescentes que ocupavam o território no ano de 1988, cujas terras eram ocupadas por quilombos em 1888, excluindo aquelas que, em razão de conflito, não estavam na posse do território na época.


Avanço:

Em 2003, Lula editou o Decreto 4887/03, que não só trouxe o critério da auto-identificação, já reconhecido na Convenção de 169, mas permitiu a desapropriação em caso de conflito e, por fim, confiou a condução do processo ao INCRA.


Reação:

O Partido da Frente Liberal (PFL), hoje conhecido como DEM, propôs, no ano seguinte, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3239) contra o Decreto, questionando tanto o critério adotado para a identificação das terras quilombolas, quanto a possibilidade de desapropriação. A imprensa, por sua vez, acusou o governo de ir além do direito garantido pela Constituição, ao fixar um critério vago para o reconhecimento dessas terras. Formalmente, o Decreto era taxado de inconstitucional, por violar diretamente preceito constitucional, e, substancialmente, era criticado por favorecer em demasia as comunidades remanescentes, causando insegurança jurídica ao setor agrário.


Retrocesso:

O INCRA publicou recentemente a Instrução Normativa 49/08, que regulamenta o procedimento de identificação das terras quilombolas. Seu texto foi fruto de um relatório do Grupo de Trabalho coordenado pela Advocacia Geral da União, que tinha a finalidade de dar uma resposta à questão quilombola, mas para muitos acabou significando um passo a traz.

Segundo Daniel Sarmento (Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Procurador Regional da República), a consulta feita às comunidades quilombolas a respeito dessa nova regulamentação foi falha, desrespeitando o direito assegurado na Convenção 160 da OIT à participação das mesmas neste tipo de procedimento. Além disso, a nova Instrução Normativa burocratizou excessivamente o processo de titulação das terras quilombolas, tornando-o mais demorado. Outro problema que ele aponta é a competência dada a Casa Civil de dar a decisão final nos casos de conflito, como o da Marambaia, no qual a Marinha também reivindica o território ocupado pela comunidade. Ele alega que, quando o processo de reconhecimento das terras quilombolas é resolvido tomando em conta critérios políticos, o seu significado, a sua razão de ser, como forma de tutela de direitos, é esvaziado, pois esta passa a estar submetida a fatores políticos. O Professor entende que a Instrução Normativa 49/08 foi na verdade uma forma de dar uma resposta à questão quilombola, que vinha ganhando grande repercussão.


Segue abaixo entrevista com os quilombolas Adriano (Comunidade Marambaia) e Luiz Sacopã (Comunidade Sacopã):


- Qual a importância para as comunidades do reconhecimento das terras quilombolas?

Adriano – O reconhecimento é importante, porque a partir dele que as comunidades vão poder viver com mais tranqüilidade, num sistema mais harmonioso. Enquanto essa definição não ocorre, as comunidades vivem sofrendo pressões enormes.

Luiz Sacopã – A partir do momento que há esse reconhecimento, já é uma forma de amenizar esse sofrimento de quatrocentos e poucos anos, que só nós temos noção.Na prática isso é discutido nos segmentos sociais, na mídia, mas só nós sabemos o que passamos.


- Como é o panorama no Brasil de reconhecimento de terras quilombolas? Já existe alguma comunidade estabilizada?

Adriano – No Brasil eu não sei, mas no Rio de Janeiro só há uma comunidade já titulada, a Campinho da Independência.O resto se encontra ainda com processos em tramitação, e agora veio essa nova instrução normativa, que burocratizou o processo trazendo mais problemas para nós.


- A luta das comunidades é pelo reconhecimento do território quilombola, no entanto a Instrução normativa 49/08 reconhece a área ocupada. Como vocês vêem isso?

Adriano – A Instrução Normativa desconsidera a Convenção 169 da OIT.Ela faz com que o território quilombola envolva apenas uma espécie de “quintal”.No entanto ele abrange um espaço utilizado para roça, culto, ou seja, um espaço além. Foi uma mudança para pior.

Luiz Sacopã – No caos inclusive da comunidade Sacopã, existe uma caverna que é o símbolo do quilombo e ela está separada da área ocupada.



- Esse critério resulta então numa diminuição do reconhecimento cultural dos quilombolas ?

Luiz Sacopã – Tem inclusive quilombos que têm cemitérios. A própria ruína da senzala, que pertence à comunidade, não estaria abrangida.


- Como é a relação das comunidades em fóruns, espaços de integração ?

A Aquilerj organiza um encontro anual, onde os representantes das comunidades participam, trazem suas demandas, suas informações, além dos outros encontros menores. Nesse, são realizadas assembléias para discutir questões que precisam de uma aprovação, como eleição de diretoria.


- Quais seriam essas demandas?

Existem pontos comuns, como a reclamação a respeito da pressão de grileiros, de não-quilombolas, que alegam ter direito sobre a terra e vão estreitando cada vez mais a área quilombola. Além disso, com relação às políticas públicas, algumas comunidades não têm energia, outras estão impedidas de receber qualquer tipo de projeto.Esta é uma forma de pressão para fazer com que as pessoas da comunidade se sintam no pior lugar do mundo e queiram sair dela.


- Por que a questão quilombola incomoda tanto ?

Adriano – Na Constituição de 1988, quando os constituintes incluíram o Art. 68, acredito que a grande maioria pensava : “ Nós temos o quilombo Zumbi dos Palmares e mais um ou dois”.Só que a constatação de que o número era muito maior(são apontadas 3.000 comunidades, mas o número chega a 5.000)criou um certo desespero, eles pensaram : “Vamos ter que dividir o país com esse povo que não tem direito a nada”.Esse ´povo no entanto é o que não teve nenhuma indenização, saiu em direção ao nada, sem casa, emprego.Passados alguns anos, descentes dessas pessoas tem acesso a alguma coisa e isso incomoda. Diante dessa demanda maior do que se esperava, tomou-se então a atitude de conter.


Luiz Sacopã – A partir do momento que essa classe dominante, que tem tráfico de influência, pela primeira vez se sente ameaçada, está usando de todos os artifícios para nos derrubar.Pensavam que iam titular 4 ou 5 famílias quilombolas, mas são milhares. E eles não conhecem o Programa Brasil Quilombola, porque o que eu vejo hoje em debates deles é a não caracterização do quilombola, da regularização fundiária. Porque vamos supor, o cara mora ali há 40 anos, então eles acham que para que seja reconhecido como quilombola, tem que ter uma senzala, uma corrente. O quilombola não é isso, é uma resistência, tem a ver com sua ancestralidade.será que se fossem os remanescentes dos nossos colonizadores, eles estariam sendo incomodados?

A comunidade afro-descendente tem que tomar uma atitude.Se nós não aproveitarmos esse governo, jamais vamos ter condições de respirar no futuro, pois a classe dominante permanece aí e esse modo de dominação dela é antigo e bem mais forte do que nós somos.


- A modificação da Instrução Normativa, além de trazer dificuldades, faz com que o estudo antropológico tenha que ser uma tese muito bem elaborada. Dito isso,como vocês vêem a importância da cultura negra ser retomada como próprio objeto de estudo acadêmico? Qual a relevância de você ter uma universidade pesquisando e pensando a questão quilombola?

Adriano – É importante, porque surge a possibilidade de dar continuidade a cultura e levantar questões esquecidas. A partir do momento que a universidade começa a pesquisar, envolvendo a participação das comunidades nas discussões. Isso resulta num crescimento.Para a comunidade negra, o aumento da auto-estima é fundamental, e para que isso aconteça, é necessário que ela conheça um pouco mais de sua origem.A pesquisa pode oferecer isso.

Luiz Sacopã – Essa Instrução Normativa chegou para dificultar, pois os trabalhos antropológicos são para confirmar algo que já existe e não para discutir se é legítimo. O governo deixou que essa regulamentação fosse mudada, no sentido de não ser revogado o Decreto 7887, que está sendo questionado judicialmente, pois se a oposição conseguisse suspendê-lo, a situação ficaria mais fragilizada.Ele foi obrigado a se curvar a essa Instrução Normativa, para que a manutenção do Decreto não fosse inviável. Mas ele não sabe o que atingiu, ele acha que só o fato de ser mantido ali já é uma vitória. Mas para nós não é, pois são quatrocentos e poucos anos de tortura, de tristeza. O que não quer dizer que vamos fazer uma retaliação. Nós só queremos o nosso direito. Eu acho que se eu estou há 80 anos num lugar, deveria seu automático o reconhecimento.Essa luta é muito árdua, causando estresse e esse estresse se reflete na saúde das comunidades, causando diabete, hipertensão. Já está na hora de alcançarmos um reconhecimento de forma mais tranqüila.


Como foi a consulta às comunidades quilombolas?

Adriano- Alguns diretores da CONAQ estavam em Brasília.e lá eles foram chamados pela AGU para uma reunião para tomar decisões quanto a Instrução Normativa.Eles recusaram, alegando que não havia tempo hábil. O governo tinha pressa e eles propuseram que cada grupo de comunidades, representando uma região enviasse o acordo a que chegaram.As comunidades não concordaram, pois entenderam que separadas teriam menos força e deveriam discutir juntas em Brasília.Elas foram convocadas as pressas.Em Brasília, já existia a Instrução Normativa pronta, foi feita a leitura e os pontos que não concordamos prevaleceram mesmo assim.Foi alegado que a AGU não poderia mudar nada, só o Presidente, que tomaria a decisão final.


O que vocês acham da atuação do judiciário na questão e como os estudantes podem futuramente auxiliar na sua defesa?

Luiz Sacopã – O judiciário é uma instituição que congrega o nepotismo.As brechas só são usadas para a classe dominante. Eu tenho um processo de usucapião há 40 anos. Na 1ª instância eu ganhei.Na 2ª, como na área onde nós moramos, mora um desembargador, o processo foi cair logo na sua mão, e o advogado por sua vez não alegou suspeição. Nós perdemos e em um mês uma imobiliária, que nem conhecíamos, entrou com uma ação de reintegração de posse e o processo correu rapidamente, a ponto de nosso advogado dizer que não tinha o que fazer.Pedimos ajuda ao INCRA e ele conseguiu que ação fosse suspensa.Dentro do processo tem a assinatura de um Procurador do Estado filho daquele desembargador. Então, essa nova garotada, que venha com novas propostas, com honestidade, porque o judiciário hoje é uma gaiola, onde está tudo engendrado. Que eles estejam dispostos a ajudar o lado mais fraco, que não tem esse tráfico de influências que têm os mais fortes.

Adriano – O judiciário seria um ponto de ajuda, mas na prática, assistimos a comunidade Marambaia levar uma goleada de votos a favor da Marinha.Uma senhora nascida e criada na Marambaia, depois de ter seus filhos já adultos foi considerada invasora e proibida de entrar na ilha.Por conta disso ela adoeceu e também foi morar na casa dos filhos.No ano passado a justiça de Angra conseguiu um parecer favorável, mas a Marinha recorreu e ganhou novamente.E esses processos implicam num desgaste, essa mulher por exemplo era chamada a todo momento para testemunhar. Esse ano ela faleceu. Existem, no entanto, casos isolados de vitória. Nós temos um procurador que trabalha com honestidade com as comunidades, nos orientando, o Daniel Sarmento. O que é direito da comunidade é nosso direito, muitas vezes a gente sabe que é nosso, mas ele não chega. Aos jovens, espero que no momento da decisão eles não levem em conta a cor ou a classe social, mas o que é justo. O Brasil assinou a convenção de 160, mas não a respeita. Não respeita o direito dos menos favorecidos, porque o restante impõe que seus direitos sejam respeitados. Essa mudança de atitude. A partir dos jovens pode acelerar um processo de avanço. Hoje, o que há infelizmente, é um incentivo às pessoas saírem das comunidades, e elas chegam na cidade despreparadas para arranjar um emprego.

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