segunda-feira, 15 de março de 2010

Olimpíadas para todos, SEM REMOÇÃO!


A mais recente luta da comunidade Vila Autódromo

“Olimpíadas para todos, sem remoção!”; “Apesar das ameaças, desejamos sucesso para as Olimpíadas”; “Esporte é vida, não estresse. Políticas Públicas já!”; “Veneza carioca para os ricos e despejo para os pobres”. As faixas colocadas em um pequeno campo de futebol, transformado provisoriamente em local para assembléias entre os moradores, movimentos sociais e representantes de diversas entidades, expressam o repúdio da comunidade Vila Autódromo ao projeto de remoção de centenas de famílias pobres para a construção no local de equipamentos para os jogos olímpicos de 2016.Não é a primeira vez que a comunidade precisa se mobilizar para evitar as tentativas de remoção involuntária. A primeira ocorreu em 1992, quando o Município do Rio de Janeiro alegou “dano estético eambiental” em ação judicial ajuizada no Tribunal do Rio de Janeiro requerendo a retirada total da comunidade. A Barra da Tijuca, então, despontava como nova centralidade para empreendimentos imobiliários, comerciais e esportivos, exigindo, como bem traduziu o procurador do município, uma nova“estética”, na qual os pobres não estavam incluídos.A comunidade, por sua vez, organizou-se e apresentou uma reação adequada à ofensiva municipal:em apenas dois anos, os moradores integraram um programa de regularização fundiária em que o poder público estadual, proprietário da gleba, reconheceu que o local era utilizado, há décadas, para a moradia. No mesmo passo, Vila Autódromo articulou sua defesa jurídica e impediu a remoção judicial das casas,demonstrando a fragilidade dos argumentos municipais em um litígio que até hoje se arrasta no Judiciário.

De Vila Autódromo, um olhar sobre a urbanização brasileira.

A situação vivenciada por Vila Autódromo não se distingue da história de muitas outras comunidades, favelas e bairros pobres das metrópoles brasileiras. Originalmente uma vila de pescadores, Vila Autódromo torna-se, nos anos 1970,uma oportunidade para a moradia de centenas de migrantes operários e trabalhadores informais que chegaram à região para a construção do autódromo de Jacarepaguá, do metrô e dos novos empreendimentos imobiliários que despontavam no local. Outras famílias foram ali assentadas em razão da remoção de outra comunidade, chamada Cardoso Fontes. Pescadores, operários precarizados, desempregados, trabalhadores informais, famílias removidas emigrantes formam a rede social que irá paulatinamente urbanizar e garantir as condições de vida na comunidade. O sistema utilizado é o denominado “mutirão”, pelo qual os moradores constroem não só suas casas, mas todo o espaço urbano, incluindo ruas, calçadas, rede de distribuição de água, sistema sanitário,creches, escolas e espaços de convívio, como o campo de futebol, a igreja e a sede da associação de moradores. Além de ser um espaço construído pelo trabalho contínuo dos moradores, Vila Autódromo aparece também como uma rede diversificada de trabalhadores da cidade: eletricistas, bombeiros, mecânicos, porteiros, pedreiros, costureiras, pequenos comerciantes, entre outros, realizam uma dinâmica prestação de serviços fundamentais para a vida urbana. O trabalho de construção da cidade se confunde, aqui, com asatividades prestadas para a cidade. Aquilo que é definido pejorativamente como o campo subterrâneo da informalidade (a cidade ilegal), é na verdade a vida e o trabalho diário, múltiplo e rico dos moradores de comunidades e favelas desprovidos de direitos.

Reconhecer a dimensão real dos direitos econômicos, sociais e culturais das comunidades pobres

Como afirmava o jurista espanhol Joaquin Herrera Flores (A reinvenção dos direitos humanos, 2009), os direitos humanos não são meras declarações formais ou abstratas, mas verdadeiros processos de luta ligados à vida, à liberdade e ao trabalho. Falar em direitos econômicos, sociais e culturais das comunidades pobres é exatamente reconhecer a dimensão material (e real!) da vida e do trabalho exercido por elas na cidade e para a cidade.Os processos de remoção involuntária raramente consideram a articulação concreta entre o exercício dos direitos e o espaço urbano. Das relações com o território surgem diferentes formas de trabalho, serviços prestados pelos autônomos e informais, redes de solidariedade social, contatos com os vizinhos, amizades para as crianças, convívios na escola, contatos com os profissionais de saúde, etc. O que para o poder público é um simples “reassentamento”, para as famílias é a uma mudança total nas formas de vida e de acesso, mesmo quando precário, aos direitos. Freqüentemente, alguns políticos, até os ditos progressistas, questionam o motivo pelo qual uma comunidade se recusa a ser realocada para casas construídas pelo poder público. Ora, a homogeneidade das construções, o espaço planificado e sem criatividade das casas e a ruptura das relações sociais com o território estão na origem da resistência dos moradores, inclusive os de Vila Autódromo.

A comunidade quer continuar onde está e receber investimentos públicos!

Ao invés de propor remoções custosas e indesejadas, o poder público deveria reconhecer e ampliar iniciativas criadas pelos próprios moradores, investindo em urbanização com participação e decisão popular,regularização fundiária (Cf. projeto do ITERJ para Vila Autódromo), assistência técnica gratuita, políticas de transferência e geração de renda, estímulo às redes sociais e culturais existentes, proteção do trabalhador informal e do pequeno comerciante, acesso à mobilidade urbana, a todos os serviços públicos e aos demaisdireitos da cidade.

A remoção de Vila Autódromo contraria os direitos fundamentais da cidade.

A remoção de Vila Autódromo ofende a legislação brasileira e a maioria dos princípios e compromissos internacionais adotados pelo Brasil sobre a efetivação dos direitos da cidade. Da Constituição Federal ao Estatuto da Cidade, da Agenda Habitat às observações gerais da ONU sobre o Tratado de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, passando pela Carta Mundial pelo Direito à Cidade elaborada pelos movimentos sociais, encontramos fundamento para um total repúdio ao tipo de “reassentamento” que se quer realizar em Vila Autódromo. Sumariamente e sem excluir outros argumentos, poderíamos apontar as seguintes razões: a)Violação da cláusula democrática e participativa. A comunidade em nenhum momento foi consultada sobre sua inclusão no projeto olímpico apresentado ao COI e soube pela “mídia” que deveria ser removida; b)Primado da regularização fundiária, do direito à moradia e da segurança da posse. A comunidade foi regularizada há quinze anos e hoje é objeto de outro programa estadual para atualizar e ampliar os títulos concedidos. A segurança da posse como elemento do direito à moradia é oponível ao município. Vale lembrar que dezenas de famílias já passaram por anterior processo de remoção e agora têm o direito de desfrutar de uma moradia segura e estável; c) Princípio da vedação ao retrocesso. Tendo sido objeto de política pública de promoção do direito social à moradia, o poder público não pode retroceder e fragilizar a proteção já alcançada de um direito social; d) Reassentamento como ultima ratio. As diretrizes internacionais afirmam que o reassentamento involuntário é medida extrema e deve ocorrer somente quando não há alternativa, não sendo o caso de Vila Autódromo; e) Garantia do devido processo legal. A remoção sob o argumento dos jogos olímpicos seria meio para, à margem do processo legal, atingir um objetivo hoje vedado pelo Poder Judiciário; f) Princípio da igualdade. De todo o seu entorno, incluindo os inúmeros empreendimentos imobiliários no local, a comunidade será a única a ser atingida pelo projeto olímpico. Porque somente a Vila Autódromo?

Por esses e outros motivos, a remoção de Vila Autódromo é ilegal do ponto de vista jurídico e inaceitável do ponto de vista político. Contra ela, todos os cidadãos, as comunidades pobres e movimentos sociais urbanos têm o direito de se insurgir e exigir do poder público o respeito aos direitos fundamentais da cidade. Participar da mais recente luta de Vila Autódromo é tarefa para aqueles que desejam, apesar das ameaças, “olimpíadas para todos, sem remoção!”.


ASSOCIAÇÃO DE MORADORES DA VILA AUTÓDROMO
NÚCLEO DE TERRAS E HABITAÇÃO – DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DEJANEIRO

segunda-feira, 8 de março de 2010

"Tudo que é sólido desmancha no ar"


Por Keka Werneck

Eu ainda estava na faculdade de Jornalismo, na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde me formei, quando fiz uma matéria sobre a desigual pirâmide salarial no Brasil. Isso já faz tantos anos, quase 20, duas décadas...O tempo voa! Mas nunca esqueci que os braçais, como garis, estão no assoalho da pirâmide: por isso vivem muito mal, comem mal, vestem-se mal, são mal tratados; e os magistrados, como juízes e desembargadores, no topo: portanto vivem muito bem, comem bem, vestem-se bem e são bem tratados. Quis refletir na matéria sobre o porquê do abismo salarial entre as duas categorias, que, para o mundo do trabalho, têm papéis tão relevantes. Tinha poucos elementos políticos à época. A matéria ficou limitada aos dados que consegui, a entrevistas, pesquisas e à voz do meu coração. Eu acreditava na imparcialidade. A escola clássica de jornalismo ensina e reforça essa idéia até hoje. Mas a imparcialidade é uma lenda. Não há imparcialidade. E não há motivos para tamanho abismo salarial, a não ser a luta de classes, claro!

Satisfez minha sanha por um tempo a explicação de que juízes e desembargadores devem ganhar muito bem mesmo, porque assumem tarefa hercúlea, de grande vulto social. Imaginem vocês o complexo que é dizer quem está certo, quem está errado. Ganhar bem significa para os magistrados cerca de R$ 30 a R$ 40 mil por mês.

Se é tarefa nobre julgar, os garis fazem o quê? Mal damos conta de cruzar com um caminhão caçamba na madrugada silenciosa da cidade, passando de carro, que é ato instantâneo acelerar um pouco mais e tapar o nariz. Quem cataria o nosso fétido? Esses homens que, para quem olha ao longe, de dentro de seus Corolas, talvez pareçam ser de fato de uma estirpe inferior, ao ponto de dialogarem com bichos de esgoto. E há uma naturalização disso. Então fica combinado que devem mesmo ganhar mal: um salário mínimo por mês, nada mais.

Mas se os juízes ganham tão bem para que não pequem e sejam justos, porque também são atentados a ganhar ainda mais, em escusas artimanhas, em enrolados esquemas, em ardilosas transações? E por que tantos garis, ganhando tão pouco, não saem por aí roubando, matando, devolvendo à sociedade o lixo imposto a eles todos os dias?

Após a última crise do capital, o intelectual alemão, Karl Marx, jornalista, fundador da doutrina comunista, a quem a elite neoliberal internacional tentou por um século jogar no calabouço dos loucos, agora ressurge, livre da camisa de força, com sua lucidez de sempre, para nos relembrar que a luta de classes está aí e explica muita coisa. Explica, por exemplo, o abismo salarial entre juízes e garis. E também indica saídas. “Sem sombra de dúvida, a vontade do capitalista consiste em encher os bolsos, o mais que possa. E o que temos a fazer não é divagar acerca da sua vontade, mas investigar o seu poder, os limites desse poder e o caráter desses limites”.

O Poder Judiciário, no Brasil, é um “simulacro”. Supera a realidade social. Se está sempre blindado, do outro lado da pirâmide, ou melhor, no subsolo dela, encontra-se o ladrão de galinha, totalmente exposto, sofrendo o "açoite" das penitenciárias, da opinião pública, da miséria humana. Roubou um pão? Que Morra!

Nesse episódio que macula o Poder Judiciário de Mato Grosso, devemos comemorar. Mostra a ante-sala das negociações. Não bastasse dinheiro de salários socialmente surreais, os olhos crescem também para o erário. Seria o sinal dos tempos?
Estariam em falta no mundo das togas homens e mulheres preocupados com a justiça social?

Disse muito bem o físico alemão, Albert Einstein, do alto patamar galgado pelo autor da teoria da relatividade: “Não tentes ser bem sucedido, tenta antes ser um homem de valor”. O problema é que isso não combina com o mundo do capital, onde ter é o que vale.

As coisas cheiram mal, diriam garis, que se assolam dia após dia, nessa rotina de mierda. Mas para Antônio Gramsci, político, pedagogo, filósofo e teórico marxista italiano, “contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática”. Então, façamos um outro lugar para se viver!

É preciso denunciar! E a imprensa deve cumprir esse papel. Deve sair dos factóides rotineiros e cumprir sua função de aprofundamento e acompanhamento dos fatos.

Parece que, pela lama visível, a moralização é tarefa utópica. Mas não é.

“Mudar é difícil, mas é possível”, garante Paulo Freire, educador recifense, que se destacou pelo projeto de educação popular, voltada para a consciência, deixando um legado milionário para a construção de um povo.

O escândalo do Tribunal de Justiça de Mato Grosso é um canto a Karl Marx, que disse, sabiamente, no século passado: “Tudo que é sólido desmancha no ar”.

Sobre o escândalo, leia aqui ou aqui

Keka Werneck é jornalista em Cuiabá


* Publicado na Caros Amigos em 24/02/2010.