sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O genocídio dos negros na Bahia



Hamilton Borges recebeu o Fazendo Media na portaria da Câmara Municipal de Salvador, ao lado do Pelourinho, onde ele desenvolve parte do seu trabalho, mas sem vínculo partidário. Atua também na campanha “Reaja ou será morto!”, cujo propósito é lutar pela vida das populações negras e pobres no estado da Bahia, hoje vítimas de um processo genocida instalado pela política de segurança pública.

Na entrevista Hamilton fala sobre esse cenário, dando exemplos concretos, diz que não vê mudanças com a ascensão do PT ao poder, comenta sobre a atuação da mídia nesse contexto e explica a atuação da Reaja. Uma boa reflexão nas vésperas da consciência negra no Brasil.

Como é que você começou a se envolver com a militância nos movimentos sociais?

Eu nasci num bairro aqui chamado Curuzu, é o bairro mais negro do mundo, só perde para o Harlem. Ele fica na Liberdade, uma região de uma história de luta negra. A militância comigo se deu desde sempre, no bloco Ilê Ayê, recentemente perdemos até a sua matriarca que é Mãe Hilda. O bloco Ilê Ayê sempre teve uma perspectiva de dizer que nós éramos negros e tínhamos que ter orgulho disso. Depois eu ingressei no Movimento Negro Unificado (MNU), uma organização nacional que me formou, criada em 78. Saí do movimento no ano passado, mas devo a ele toda a minha formação e os princípios básicos de luta que eu congrego.

A minha experiência de vida dentro da comunidade do Curuzu, uma comunidade muito pobre, foi o fundamento para a radicalidade que a gente acha importante imprimir em qualquer luta: seja a luta racial, de gays e lésbicas, das mulheres, por moradia. Porque eu vi ao longo de mais de 40 anos vários irmãos meus serem destruídos, encarcerados e apodrecidos em vida dentro dessa cidade. Salvador é a pior cidade do mundo para mim, não tem alegria nenhuma, o que você tem aqui é um cheiro de xixi desgraçado e um abandono do poder público.

Essa cidade é um laboratório de luta, aqui é onde nós estamos nas piores condições. Você olha aquele homem ali carregando aquele fardo de papel, é como se não tivesse lapso temporal, é como se o avô dele estivesse presentificado nele. É uma cidade desigual demais e apresentada para o mundo inteiro como um lugar alegre, em que os negros dominam: porra nenhuma, a gente só ofereceu à classe dominante branca dessa cidade o capital simbólico, mas não tem nada de retorno para nós.

Você é muito ligado à questão do extermínio da população jovem aqui, que bate necessariamente na questão negra. Eu queria que você falasse sobre isso.

Na verdade a gente bate numa concepção que não é discutir extermínio. Pelos números, pelos dados e pelo método que o estado brasileiro utiliza contra a gente, seja no Rio de Janeiro, em Salvador, São Paulo, até no Paraná, a gente já está numa situação de genocídio. Temos uma consciência de que a juventude negra é uma das principais vítimas, mas não são as únicas. O genocídio não está só relacionado à morte por bala, tem outras questões que dizem respeito a esse processo como a falta de atendimento a saúde.

Relacionando a questão da violência letal das armas com a saúde, nós nos deparamos em 2007 com a morte de um companheiro nosso, o Mc Blue, Clodoaldo de Sousa, 22 anos, que foi assassinado por um grupo de extermínio tolerado pela polícia aqui. Logo no primeiro mês do governo Wagner em 2007, a gente se deparou com uma coisa: o sobrevivente da matança de Nova Brasília, Cleber Álvaro, foi para o hospital central daqui e os princípios do SUS não o atingiram. Ele não teve integralidade no atendimento, ficou submetido a uma equipe médica que depois mandou ele pra casa sem curar, não foi colocado numa fisioterapia e até hoje ele tem seqüelas desse PAF (Projétil de Arma de Fogo). Ele é uma pessoa, mas vários jovens estão ficando imobilizados. Quando a bala não mata, imobiliza. Então uma outra coisa: a polícia aqui nessa cidade quando chega para matar, a gente está praticamente morto.

“A POLÍCIA AQUI NESSA CIDADE QUANDO CHEGA PARA MATAR, A GENTE ESTÁ PRATICAMENTE MORTO… A POLÍCIA É O ÚNICO BRAÇO DO ESTADO QUE ENTRA NAS NOSSAS COMUNIDADES… TODO PRESO NEGRO É UM PRESO POLÍTICO”

Em que sentido?

A polícia é o único braço do estado que entra nas nossas comunidades. A gente não tem comida, não tem emprego, não tem acesso aos bens e serviços culturais, a gente vive como uma certa anomalia perambulando pela cidade. É uma coisa tão ruim que a gente às vezes até introjeta esses valores que são os do racismo, da baixa auto estima, quando vê uma pessoa da chamada classe superior.

Entramos no debate de segurança pública em 2007, mas mais organizado aqui em Salvador, porque antes a gente já na experiência do MRU disse lá atrás em 78 que todo preso negro é um preso político. Então a gente sempre teve certeza de que atuar dentro do sistema prisional é uma necessidade dos negros.

O Reaja nasceu porque foi assassinado um jovem, Robson Silveira da Luz, então a gente sabia que a brutalidade policial tinha que ser atingida. Só que entramos numa perspectiva de conquistas simbólicas, você vê aí as pessoas louvando o estatuto da igualdade racial, setores do movimento negro, setores pelegos, a gente pode dizer com toda tranqüilidade: capitularam, se acovardaram diante da luta. Abraçaram o PFL, o DEM, por um estatuto que na verdade é esvaziado, desmelinguido, um estatuto para dizer que o governo faz alguma coisa e para negar a centralidade do debate que nós estamos querendo colocar nesse país que é o racismo. Para nós da Campanha Reaja, o centro da contradição desse país é o racismo. Se a gente resolver todos os outros problemas e não resolver o problema racial, vamos continuar dentro dessa guerra.

Você tocou em alguns aspectos na política, essa mudança do ACM para o PT com o Jaques Wagner teve algum avanço aqui na Bahia?

Nós já enterramos tantos mortos durante esse governo que se teve avanço não vimos. Do ponto de vista de segurança pública, que é o tema que a gente mais se debruça, você não pode chamar avanço. Por exemplo: em 2005, no auge do governo carlista, nas mãos de Paulo Souto, morreram entre janeiro e setembro 635 pessoas. Em 2007 enquanto todo mundo estava soltando bomba e rojão para o governo Wagner, nós dissemos que ele tinha de mudar a lógica de política de segurança e dizer qual que é o projeto. Eles não disseram e muito menos mudaram a lógica, pelo contrário, eles mantiveram os coronéis que sempre serviram de cão de guarda da turma de ACM e faziam o serviço sujo dele – colocaram esses oficiais na polícia militar.

Dentro da polícia civil continuaram os mesmos delegados que sempre fizeram grandes truculências. Para você ter uma idéia, na Confêrencia Nacional de Segurança Publica (Conseg), que foi essa farsa armada pelo governo federal, teve um debate em que participava uma mulher conhecida aqui como a delegada “miseravona de Itapuã”, que sempre serviu aos interesses de ACM. Tem uma polícia aqui conhecida como “polícia do sertão” que, no primeiro momento, foi treinada pelo coronel Mulle: o grande nome de ACM na repressão, por exemplo, em Coroa Vermelha. Ele comandou todos aqueles ataques em Coroa Vermelha em 2000, quando os movimentos sociais fizeram um protesto contra os 500 e por um outros 500. Então nós tivemos no ano passado mais de 2.300 pessoas assassinadas, sendo que dessas mais de 40% no ano.

Quase o dobro do Rio de Janeiro…

O dobro do Rio. Nós temos a polícia que mais mata, porque 40% dessas pessoas foram vítimas dos chamados autos de resistência, confrontos seguidos de morte com a polícia. A gente tem na Bahia uma licença para matar odiosa, nós temos declarações do secretário de segurança pública, que é um homem citado na “operação navalha”, tratava da Gautama, daquele empreiteiro que ganhou muito dinheiro, o Zuleido Veras – esse cara é citado, é um corrupto.

No mês de agosto, numa operação policial em que pretensamente traficantes assassinaram um policial conhecido como Ohara, que tinha métodos de investigação com tortura, que pagava propina aos traficantes. Ele deixou de pagar o dinheiro dele e mataram esse traficante, uma guarnição de mais de cem policiais invadiram a comunidade Canabrava, retiraram do colo de uma mãe três filhos e assassinaram esses meninos. Foi ele quem disse numa chacina que teve no bairro da Paz “que nós vamos caçar esse bandido e se possível matá-lo”. Essa que é a lógica de segurança, não tem nenhuma diferença de Beltrame, é uma lógica nacional. Qual que é o problema? Aqui em Salvador não repercute, na Bahia.

“ESTÁ INSTALADA NO ESTADO DA BAHIA A PENA CAPITAL, AS PESSOAS ESTÃO MORRENDO, BASTA ESTAR VIVAS, BASTA SER NEGRO E SER POBRE PARA AS PESSOAS MORREREM AQUI NESSA CIDADE”.

Isso que eu ia te perguntar, como é a questão da mídia nesse cenário que você está contextualizando aqui na Bahia?

A mídia aqui tem uma assessoria especial dentro da secretaria de segurança pública. Você tem programas que são conhecidos nacionalmente, como o “Balanço Geral”. Aqui tem um programa “Na Mira”, que expõe os corpos de jovens negros assassinados, baleados, esquartejados todo o meio dia, então você tem uma lógica assim. Tem o negócio da política do medo e a secretaria de segurança pública faz isso com uma eficiência danada, hoje tudo é o traficante então tudo se justifica pelo tráfico de drogas.

Nós tivemos uma situação colateral dessa situação, esses incêndios (novembro/09) agora em Salvador, vamos por partes: a polícia invadiu uma comunidade em 2007, jovens estavam jogando futebol de madrugada na quadra, um deles saiu correndo e atiraram. Pegou na cabeça e matou, o jovem Djair, a comunidade de manhã pegou um ônibus e queimou, porque era a forma que ela tinha de se manifestar naquele momento. O governador disse assim: “não vamos permitir que se queime ônibus aqui em Salvador, porque aqui tem governabilidade”. Quer dizer, ele permite que matem pessoas inocentes, mas não permite que se vá para cima do patrimônio privado que são os ônibus. As pessoas ficam: ah o nosso ônibus… O ônibus não é público, ele é privado e é, inclusive, um péssimo ônibus.

Essa situação repercutiu, porque saiu na CartaCapital. A mesma coisa aconteceu agora, mataram um jovem de 13 anos em Águas Claras e a comunidade veio e queimou um ônibus. A partir daí se começou a queimar ônibus na cidade toda, se foi ou não facção criminosa, nós não sabemos: agora, não tem investigação para dizer se vão transferir ou não aquela pessoa, não tem o devido processo legal. Eles, por conta da política do medo, estão fazendo o que querem, matam as pessoas e dizem que tinham passagem. O fato de ter passagem pela polícia já significa que você pode ser morto: está instalada no estado da Bahia a pena capital, as pessoas estão morrendo, basta estar vivas, basta ser negro e ser pobre para as pessoas morrerem aqui nessa cidade.

É óbvio que isso está gerando um efeito colateral. As pessoas excluídas pobres que têm acesso a uma arma, afinal as armas e as drogas só chegam em nossas comunidades porque existem facções criminosas muito bem obrigado: acolhidas pelo DEM, pelo PFL e por pessoas que lutaram conosco durante tantos anos e quando ocuparam o poder estão fazendo pior. O presídio de Simões Filho, por exemplo, é a prova cabal de que este governo é um governo pelego que quem o encabeça negou toda a sua trajetória política. Todo o seu discurso foi por água abaixo, porque criar um presídio em área quilombola, de preservação ambiental, debaixo de mais de 16 dutos de gases que podem matar as pessoas que estão lá, e sem nenhum plano de contingência, isso é no mínimo um processo de fascismo; isso que nós estamos combatendo. Eu queria inclusive perguntar ao Tortura Nunca Mais qual é o diálogo que eles estão fazendo aqui na Bahia, porque o grupo deles está muito preocupado em garantir as indenizações para as vítimas de 64.

No Rio eles chegam junto no processo de segurança pública…

Mas aqui está querendo anistia para as vítimas de 64, enquanto várias famílias perderam seus entes queridos e precisam ser indenizadas, precisam ser reparadas pelo o que o governo faz. Essas organizações de brancos de direitos humanos aqui da Bahia se calaram diante do secretário de segurança pública na hora da abertura da Conseg. Diante de tantos mortos elas tinham a obrigação moral, ética, de escrever pelo menos uma nota sobre o que está acontecendo nesse país. Mas elas não falam nada, porque elas estão recebendo o seu dinheirinho lá no Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci).

O racismo não foi pauta na Conseg?

Foi pauta, teve organizações do movimento que achavam que tinham de disputar, eles disputam porque estão todos pensando nos cifrões. Nós dissemos o seguinte: vamos fazer o Enposp, um Encontro Popular pela Segurança Pública, para discutir uma outra segurança pública. Nós não queremos reformar a segurança, a gente quer outra sociedade: uma outra segurança pública só será possível com uma outra sociedade.

Como é na prática a atuação da Reaja?

Ela é vasta, amanhã (22/09) mesmo a gente vai numa reunião com a defensoria pública com várias esposas de presos de várias unidades: Simões Filhos, Serrinha e presídio de Salvador. Tem oito presos baleados no presídio de Lauro de Freitas, a gente vai lá para pedir um ofício na defensoria pública porque a gente não acredita mais no Ministério Público: não dão respostas, as instituições que deveriam nos defender não atuam na prática.

A ação da gente é de formação, de ação dentro das comunidades. A gente acredita ainda nas denúncias, não podemos fazer outra coisa. Estamos num processo nesses últimos meses de formação e informação para preparar um material para divulgar ao mundo o que está acontecendo aqui na Bahia. Com todo o risco que a gente possa correr, não fazemos isso para salvar ninguém e sim para si salvar. Não temos uma visão cósmica de que o mundo está sofrendo e a gente vai salvá-lo: temos a consciência de que nós estamos nessa bolha e a gente quer estourá-la, somos desse jeito.

(*) Entrevista realizada por Eduardo Sá, do Fazendo Media. Foto: Ciranda.net.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O Pancadão na Lapa


Acontecerá no dia 20 de Novembro a 1ª Edição da “Festa Funk de Raiz”.

Realizada pela Associação de Profissionais e Amigos do Funk, o evento contará com a participação de grandes nomes do Movimento Funk é Cultura.

A verba arrecadada será destinada ao projeto da "Cartilha de Conscientização dos Direitos dos Trabalhadores do Funk".


Local: Espaço Hombu - Av. Mem de Sá, nº 18 - Lapa/RJ (próximo aos arcos)
Data: 20/11/2009 - Sexta-Feira
Horário: 22:00hs
Ingresso: R$ 20,00 (estudantes pagam meia)
E-mail: festafunkderaiz@gmail.com

domingo, 15 de novembro de 2009

As UPPs, a mídia e o Otávio Mesquita

por Guilherme Pimentel

A abordagem geral sobre as favelas ocupadas pela Polícia Militar, especialmente onde há experiências de Unidades de Policiamento Pacificador (UPP’s), está muito equivocada. A função de qualquer atuação do Estado em um espaço da cidade deveria ser a de garantir direitos e melhoria da qualidade de vida da população que vive ali — obviamente levando em consideração a opinião de quem lá mora. No entanto, não me parece que é bem isso o que está acontecendo...


Outro dia, lendo um artigo sobre as favelas ocupadas pela PM na Revista d’O Globo, me lembrei de uma madrugada de insônia, tediosa, em que cismei em ligar a TV para “assistir qualquer coisa”, mesmo sabendo que “qualquer coisa” na TV nessa hora é muito pior do que o tédio. Não encontrando nada, entrei na velha dinâmica de ficar mudando de canal, meio que na inexplicável e automática esperança de que algum daqueles seis ou sete canais passasse a transmitir algo diferente e interessante em intervalos de um minuto. E foi reproduzindo este comportamento bizonho, que encontrei algo ainda mais bizonho que meu comportamento: o programa do Otávio Mesquita.

Neste programa, ele passava um verão em um hotel de luxo no México. Mostrava a piscina, os drinks, o bar, o restaurante, a vista, os quartos, os jardins etc. Lá pelas tantas, mostrou a maior atração do hotel: empregados invisíveis! O hotel conta com uma rede de túneis pelos quais seus trabalhadores (milhares, para manter o luxo) circulam e “só aparecem quando chamados para servir um cliente!”.

A invisibilidade do trabalhador está cada vez mais vinculada ao projeto de sociedade de consumo. Quem assistiu ao vídeo oficial da campanha Rio 2016 viu um Rio de Janeiro sem favelas. Os projetos governamentais para as favelas incluem — todos — muita polícia e alguma maquiagem, como a pintura de casas visíveis do asfalto com tintas de cores fortes e bonitas. E quando se pensa sobre inclusão e favela, às vezes se esquece de pensar nos próprios moradores das favelas.

A matéria que me remeteu a uma noite bizonha falava das favelas sem falar dos favelados. Abordava “programas agradáveis” que a classe média pode fazer nos morros cariocas ocupados pela PM, os preços, as vistas, os sabores, as cores... Mas não falava dos trabalhadores. Assim como essa, li outra que falava do quanto a ocupação policial valorizou Botafogo. Eu me pergunto: valorizou pra quem? Quais são os efeitos reais dessa valorização?

Chego a me desesperar, às vezes. Vejo formas sem conteúdo, matérias sobre a cidade que não discutem a cidade. Um jornalismo propagandista, não investigativo, que se baseia em releases governamentais. Compromissos, qualquer um, menos com a Verdade. Da mesma maneira, novamente, li as notícias mentirosas de que um policial militar fora espancado em um baile funk na Cidade de Deus. A “notícia” foi baseada única e exclusivamente em uma nota da Secretaria de Segurança Pública, que contrastava justamente com o próprio inquérito da Polícia Civil, taxativo na definição do local, que não era o baile. Sabendo do erro, as pouquíssimas notas publicadas eram minúsculas e não cumpriam bem a tarefa de desmentir as capas dos dias anteriores.

A mídia comercial, formada por verdadeiras linhas de produção de papel, esquece-se de sua função social: informar. E, buscando o lucro, reproduz a lógica do consumo, explorando trabalhadores jornalistas, que são pagos para ignorar ou falar mal de trabalhadores não-jornalistas.

Por isso, ao se dirigir à classe média, fala da valorização imobiliária de Botafogo e fala dos “programas legais” que se pode fazer nos morros, sobretudo elogiando o policiamento nas favelas. Afinal, o critério para se fazer essa análise é o critério do consumo: ver e pensar as coisas a partir do ponto de vista do indivíduo consumidor. Segundo esse critério, de fato não há razão em se falar de direitos de quem lá vive. Portanto, reside aí o primeiro equívoco: asfalto e favela continuam separados, divididos pelo muro da abordagem pública das grandes corporações, que constrói um senso comum que desumaniza e invisibiliza os anfitriões dos locais onde ocorrem “os programas legais”. Nem a ação estatal está preocupada em unir de fato a cidade, nem a abordagem midiática produz isso.

Já quando analisamos o discurso oficial que atinge camadas mais populares ou que abordam temas mais próximos a políticas públicas, o foco muda um pouco: a abordagem fala do medo, da violência, dos perigos, dos riscos... Fala de tudo aquilo que não foi dito no videozinho do Rio 2016, ou seja, da necessidade que o povo tem de ser policiado, mesmo que abrindo mão de vários direitos. Obviamente, falar de consumo para quem serve o consumidor, falar de trabalho para quem trabalha, falar de direitos para quem não os tem, não ajuda na propaganda oficial da Política de Segurança que controla uma sociedade altamente desigual.

Então, vamos ao que interessa: os problemas que temos visto nisso tudo.

Ao falarmos de acesso à energia elétrica, já começamos mal. A Light chegou ao Santa Marta trazendo a... escuridão! Rapidamente instalaram medidores de energia para viabilizar a cobrança das contas de luz nas casas. No entanto, apesar da rápida instalação de medidores de energia (e até cortes de luz em algumas casas), a iluminação pública ainda não foi instalada. Alguns becos e vielas ficam às escuras, crianças não podem mais brincar à noite... Ou seja, a qualidade de vida piorou com a chegada da Light.

Mas a arrecadação da Light aumentou. E isso ainda não foi pautado. Lembremos que o valor da conta de luz que pagamos está submetido a um cálculo que leva em consideração a demanda total de energia. Ora, a demanda diminuiu e tende a diminuir mais ainda, e a arrecadação aumentou e tende a continuar aumentando. Então, será que os governantes têm se esquecido de refazer o cálculo e diminuir a taxa de energia da cidade? Por que não vemos isso também?

Os muros foram construídos em favelas que diminuem de tamanho, segundo dados oficiais. A justificativa para a construção dos muros foi “conter a comunidade”. Será que é muito difícil perceber que o discurso não condiz com a realidade e que tem algo de estranho nisso tudo? As câmeras no Santa Marta foram instaladas do dia pra noite, sem discussão alguma com os moradores vigiados. O policiamento mais uma vez se mostra a serviço do controle dos pobres e não da garantia da segurança dos mesmos — o que tem se manifestado também nas abordagens violentas e agressivas, desrespeitosas de direitos, com relatos de policiais homens revistando moradoras, deboches, agressões físicas, entre outros.

Muitos barracos de madeira ainda não foram substituídos por casas de alvenaria. Mesmo as casas de alvenaria que foram feitas são muito pequenas, abaixo do mínimo recomendado. O problema dos valões ainda não foi resolvido. Um transporte muito comum na Cidade de Deus, o moto-táxi, foi retirado pela ocupação. E nenhuma alternativa de transporte público foi pensada. Atividades culturais estão praticamente suspensas em muitos dos lugares ocupados, sem opção de convívio social, divertimento e lazer para a juventude pobre.

Um jornalismo sério deveria se perguntar: por que fuzis e câmeras onde não há mais varejo de drogas armado? Por que quando a Light chega traz a escuridão? Por que muros em favelas que diminuem de tamanho? Por que não estamos discutindo direitos, ao invés de discutir oportunistas, insensíveis e sádicos divertimentos em áreas pobres sem uma relação humana com os que ali vivem? Por que não queremos ver aqueles que trabalham? Por que discutimos a cidade sem considerar quem faz a cidade funcionar?

Enquanto o Otávio Mesquita for a vanguarda da grande mídia e das políticas públicas, sinceramente, não teremos solução de fato para a cidade.


*Guilherme Pimentel é estudante da UERJ e militante do Movimento "Direito Para Quem?".