sábado, 17 de março de 2012

O que é Direito?



Em "O que é Direito" (primeira edição em 1982), ROBERTO LYRA FILHO faz uma excelente introdução crítica ao Direito, e afirma que a maior dificuldade não é mostrar o que ele é, mas dissolver as imagens falsas ou distorcidas que muita gente aceita como retrato fiel:

"A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção. Embora as leis apresentem contradições, que não nos permitem rejeitá-las sem exame, como pura expressão dos interesses daquela classe, também não se pode afirmar, ingênua ou manhosamente, que toda legislação seja Direito autêntico, legítimo e indiscutível. Nesta última alternativa, nós nos deixaríamos embrulhar nos “pacotes” legislativos, ditados pela simples conveniência do poder em exercício. A legislação abrange, sempre, em maior ou menor grau, Direito e Anti-direito: isto é, Direito propriamente dito, reto e correto, e negação do Direito, entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido.

A identificação entre Direito e lei pertence, aliás, ao repertório ideológico do Estado, pois na sua posição privilegiada ele desejaria convencer-nos de que cessaram as contradições, que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali é imaculadamente jurídico, não havendo Direito a procurar além ou acima das leis. Entretanto, a legislação deve ser examinada criticamente, mesmo num país socialista, pois, como nota a brilhante colega Marilena Chauí, seria utópico/ilusão imaginar que, socializada a propriedade, estivesse feita a transformação social completa."


Aqui você pode encontrar o livro na íntegra. Ou basta procurar no google por "o que é direito - roberto lyra filho".

sábado, 10 de março de 2012

EXAME CRIMINOLÓGICO



Por Rafael Barcelos Tristão, militante do Movimento Direito Para Quem?

Antes da lei 10.792/2003 o exame era condição obrigatória para as progressões de regime. Com a referida lei o procedimento passou somente a focar a individualização da pena, evitando ao máximo o impacto negativo do cárcere. Tal objetivo não foi alcançado. Porém, a demanda por subterfúgios para manter o condenado em regime fechado para além das fronteiras da legalidade fez com que surgisse a seguinte interpretação: “a lei retirou a obrigatoriedade, mas também não vedou a utilização, em certos casos, como condição às progressões de regime.” Diante da controvérsia (exame somente para individualização X exame como possível condição para a progressão), o STF editou a súmula vinculante número 26: “para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, (...) sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico”.

O exame passa a ser facultativo desde que o magistrado “considere necessário o estudo à boa reinserção social do apenado. A aferição das condições para a vida comunitária livre não pode ser operada apenas com avaliações superficiais e mecânicas, sob pena de se desvirtuar o sistema progressivo, fazendo-o mera aparência, com danos significativos à segurança da comunidade e à efetiva ressocialização do infrator (STF 2011 HC 108804 / SP)”. Na prática, continua a ser utilizado como condicionante à progressão de regime, mesmo que a lei não obrigue.

Em que consiste o exame criminológico para fins de progressão de pena? O condenado fica alguns minutos frente a um psicólogo. Este profissional elabora um laudo sobre a “prognose de reiteração criminal”, ou seja, quais as chances do condenado delinqüir novamente. Podendo assim a progressão de regime ser negada mesmo que o condenado tenha bom comportamento (condição subjetiva) e ter cumprido o tempo devido (condição objetiva), já que tais requisitos são “avaliações mecânicas e superficiais” conforme o entendimento do STF.

Diante disso, algumas considerações sobre este exame merecem ser realizadas:

a) Viola a legalidade, pois tal condição para a progressão não advêm de lei, mas sim de um laudo (cada avaliador pode ter os seus parâmetros para considerar o condenado apto ao convívio social), sendo um instrumento de eternização das penas em nome da defesa da sociedade;
b) Substitui o paradigma da culpabilidade pelo da periculosidade, o que em tese só se aplicaria aos submetidos às medidas de segurança: a constrição da liberdade dos plenamente capazes de entender o caráter ilícito dos seus atos deve estar vinculada ao tempo de pena, calculada conforme a reprovabilidade da conduta (art. 59 do CP). A indeterminabilidade das restrições a liberdade com base no “enquanto perdurar a periculosidade” já permite absurdos em demasia no uso das medidas de segurança. O exame criminológico é uma brecha para a generalização deste paradigma;
c) Direito penal de autor e não de fato: onde se pune mais gravemente o condenado pelo que ele é e não pelo que fez: se o réu se adequar aos requisitos objetivos e subjetivos de progressão não há que se falar em “tendência a cometer novos crimes”, sob pena de se violar o princípio constitucional da isonomia na execução penal: os “normais” teriam privilégios na execução penal;
d) “Vergonha de julgar”: os juízes transferem o oficio de julgar aos “técnicos morais” e seus saberes “científicos”, o que viola o princípio da fundamentação das decisões e da inafastabilidade do poder judiciário, pois o laudo deve ser um elemento de convencimento e não a decisão em si, sob pena de tornar juízes autômatos e produzir decisões incontroláveis. O saber “científico” retira os freios da legalidade ampliando o controle;
e) O crime é um acontecimento, uma eventualidade, a maioria dos atos de uma pessoa são lícitos e não criminosos. Os criminológos que buscam as causas do delito atualmente concordam que converge para o atuar delitivo uma pluralidade de fatores (não se avaliam as causas externas no exame): muitas vezes o crime é fruto do desespero ou de situações sociais extremas;
f) No pouquíssimo tempo de entrevista não é possível conhecer a personalidade do condenado e muito menos fazer uma “prognose criminal” sobre possíveis reincidências. Só se o profissional a realizar o exame for perito em artes místicas de futurologia;
g) Mesmo que fosse possível mapear a personalidade do indivíduo: não pode o Direito atuar no sentido de modificar moralmente a pessoa e muito menos tratá-la de forma mais rígida se não estiver subjetivamente inserida nos “parâmetros éticos da sociedade”. Essa atuação viola o direito constitucional à intimidade (o Estado não pode interferir neste âmbito da personalidade do indivíduo) e o princípio da alteridade (o direito penal só pune o que se torna externo ao agente). Todos têm o direito de serem maus interiormente;
h) A pretensa restrição trazida pela Súmula 26 “somente crimes hediondos” faz com que quase 60% dos presos no Brasil estejam sujeitos ao exame, dado o fato de roubo e tráfico serem os crimes que lotam as prisões. No Direito Penal, as exceções se tornam rapidamente regras;
i) Desproporcionalidade: num exame psicotécnico (para concursos públicos ou carteira de motorista) as pessoas têm mais garantias do que no exame criminológico. Os tribunais superiores entendem que o Psicotécnico para ser válido deve ser: i) razoável; ii) objetivo e iii) passível de controle. Certamente que nenhum destes três elementos está presente no exame criminológico...