segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Muros nas favelas: entre a criminalização da pobreza e a miopia do ministro


Durante as décadas de oitenta e noventa do século XX, sob o signo da guerra ao tráfico de drogas, tem início no Rio de Janeiro o processo de militarização da política de segurança pública. Cabe lembrar que Nilo Batista descreve a política criminal de drogas no Brasil como “política criminal com derramamento de sangue” (BATISTA, 1997, p. 129).


Infelizmente, essa tragédia não é particular, pelo contrário, integra o fortalecimento do discurso de um Estado Penal em escala global, ou “globalitária” nos termos do saudoso geógrafo Milton Santos (2001).

Esse contexto é corroborado pelas representações lineares construídas pela mídia em torno do “mito das classes perigosas”, servindo como justificativa para o investimento massivo numa política cada vez mais coercitiva. Nessa perspectiva, o debate sobre o enfrentamento efetivo da questão social que atravessa nosso cotidiano é omitido, dando vazão a simulacros solucionais calcados na punição.

Atualmente, a representação mais densa de tal processo, ao menos no Estado do Rio de Janeiro, é a construção de muros entorno das favelas localizadas nas encostas das áreas nobres da zona sul carioca. Tal política é fruto de uma aliança entre o Prefeito Eduardo Paes e o Governador Sérgio Cabral, ambos do PMDB, e conta com o incentivo político do governo federal (PT).

Ironicamente chamados de ecolimites, em alusão à proteção da mata atlântica próxima as comunidades, os muros são feitos de concreto e possuem três metros de altura. Assim, partindo de um pretexto ambiental, o muro permite um controle mais apurado sobre a parcela empobrecida da população. Essa situação fica latente quando paralela a construção dos muros é implantado um modelo de policiamento comunitário, que em nada se diferencia das esporádicas megaoperações e seus lastros fúnebres.

Como se já não bastasse a ausência de políticas públicas promotoras de cidadania, aqui entendidas “como a presença efetiva das condições sociais e institucionais que possibilitam ao conjunto dos cidadãos a participação ativa na formação do governo e, em conseqüência, no controle da vida social” (COUTINHO, 1997, p. 145), a segregação, o estigma e a vigilância apurada por esse tipo de política revelam o aprofundamento do que Nilo Batista chamou de cidadania negativa, em que os sujeitos só têm acesso ao estado através da sua face coercitiva.

A anuência do governo federal tanto em relação aos muros, quanto em relação à política de segurança, fica evidenciada nas reiteradas visitas do próprio Presidente Lula e/ou seus Ministros de Estado às comunidades muradas para promoção do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do degenerado Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI).

A última visita ocorreu dia 17 de setembro no morro Dona Marta, tendo como protagonista o Ministro da Justiça e pré-candidato ao governo Estadual do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. O Ministro afirmou insistentemente que o a construção de concreto de três metros que cerca a favela é apenas um delimitador de espaço, e não um muro.

Esperamos que a miopia do Ministro não seja o subterfujo para a continuidade do processo de criminalização da miséria promovido pelas três esferas do poder executivo no Estado do Rio de Janeiro.


Referências bibliográficas:

BATISTA, Nilo. Política criminal com derramento de sangue. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 20, 1997.

COUTINHO, Carlos Nelson. Notas sobre cidadania e modernidade, In: Praia Vermelha - Estudos de Política e Teoria Social, Rio de Janeiro. v. 1, nº 1, ª sem. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGESS, 1997.


*Por
Ítalo Pires Aguiar, graduando em Direito pela UERJ e membro do Movimento "Direito Para Quem?"

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Como se fossem entulho



por Ignácio Cano*


Nos últimos tempos, a prefeitura do Rio de Janeiro vem desenvolvendo campanhas denominadas de "choque de ordem", executadas pela recémcriada Secretaria Especial da Ordem Pública, com o objetivo declarado de restabelecer a ordem urbana. Essas campanhas parecem contar com a aprovação de certos setores da sociedade e com o apoio explícito de importantes meios de comunicação.

As raízes da demanda social pela instauração de uma ordem urbana são diversas e, em boa parte, legítimas.

A sujeira e o descaso com a infraestrutura urbana, o caos na utilização do espaço, um arcabouço normativo frequentemente ignorado até pelas próprias autoridades, a sensação de ameaça representada por flanelinhas que se apropriam das ruas, intimidando os clientes. Esses e outros elementos conspiram para estimular a exigência de uma nova ordem urbana.

De forma geral, o espaço público está submetido a um uso concorrente por parte de diversos grupos sociais que precisa, necessariamente, ser regulado. O problema está na percepção de que essa ordem está sendo entronizada preferencialmente a favor de alguns grupos e, sobretudo, contra outros. Neste sentido, a prefeitura do Rio parece continuar uma longa tradição de hostilidade a grupos marginalizados, desde os capoeiras no século XIX a prostitutas e mendigos em tempos mais recentes. Se as administrações do anterior prefeito encarnaram sua fúria normativa contra os camelôs, a população de rua parece ter se tornado o alvo da vez.

Inclusive, gerou-se entre muitos cidadãos a expectativa de que basta ligar para a prefeitura para que moradores de rua sejam retirados de um local, como se fossem entulho, para alvoroço de todos aqueles para quem o problema real não é a pobreza, mas apenas o incômodo de ter que conviver com ela de perto. De fato, a retirada da população de rua parece ser realizada com um caráter coativo, por exemplo apreendendo os pertences das pessoas e obrigando-as a sair. Um sintoma desse espírito autoritário é o fato de que policiais são enviados para um recolhimento que deveria ser feito por assistentes sociais. A foto publicada na página 10 do GLOBO (9 de abril), em que um policial aponta sua arma para um menino no chão, não precisa de comentários. Posteriormente, como era de se esperar, mendigos e moradores de rua voltam dos abrigos distantes a que são levados, reiniciando uma caçada cujo único resultado tangível é permitir às autoridades se apresentarem como cruzados da ordem.

É preciso reconhecer que o problema da população de rua não é simples de resolver e acontece também em sociedades com renda per capita substancialmente superior à nossa. Mas qualquer solução deverá ser encontrada em conjunto com os moradores de rua e não contra eles. A tentativa de retirada forçosa dessas pessoas é, de um lado, injusta e, de outro, inócua, pois elas voltarão, a não ser que lhes seja oferecida uma alternativa mais atraente. Um dos melhores exemplos de degradação urbana é o estado de muitos dos túneis da cidade, fétidos e impraticáveis para os pedestres. Possíveis medidas incluiriam, por exemplo, a criação de banheiros públicos gratuitos na entrada e a negociação com os moradores de rua para que usem apenas um lado e liberem o outro para os pedestres. Mas isso implicaria reconhecer a realidade em vez de oscilar entre a negação e o autoritarismo. A nova ordem urbana a ser instaurada não precisa de choque, mas de critério. Em primeiro lugar, deve levar em consideração as dificuldades práticas que muitos cidadãos têm para cumprir as normas, como revela o flagrante recorrente de carros de autoridades estacionados em fila dupla. Em segundo lugar, é preciso que a ordem seja estabelecida de forma democrática e não contra os mais fracos. Uma coisa é perseguir quem lucra vendendo produtos sem condições sanitárias ou construindo prédios em solo público com um fim comercial, medidas a serem aplaudidas, outra muito diferente é enxotar os pobres das áreas nobres, tratandoos como se fossem, eles próprios, o problema.

*Ignácio Cano é professor do Departamento de Ciências Sociais da UERJ

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Sobre o conceito de História - 9ª Tese - WALTER BENJAMIN


"Minha asa está pronta para o vôo
se pudesse eu retrocederia
pois permanecesse eu no tempo vivo
teria menos sorte."
(Gerhard Scholem, Saudação do Anjo)


Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivel-mente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Vitória da massa funkeira na ALERJ

Mc Pingo (Força do Rap) comandando a roda na escadaria da ALERJ


*Por Marcelo Salles

Em mais um exemplo de capacidade de mobilização, a massa funkeira carioca reuniu cerca de mil pessoas nas escadarias da Assembléia Legislativa, na terça-feira, dia 1o de setembro. O resultado não poderia ser diferente: a lei que criminalizava o ritmo foi derrubada e, em seu lugar, foi aprovada uma outra que reconhece o funk como manifestação cultural. Tudo por aclamação.

A vitória dos funkeiros em muito decorre da insistência abnegada da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (APAFunk), presidida por MC Leonardo, que além de autor, com seu irmão Júnior, de letras como Rap das Armas e Endereços dos Bailes, é colunista da revista Caros Amigos – o que é sistematicamente omitido pelas corporações de mídia.

Os MCs Leonardo, Júnior, Teko e Tiana, além do DJ Marcelo Negão, entre outros integrantes da APAFunk, lutaram incansavelmente para que este momento chegasse. [Em outra desinformação absurda, o portal G1, das Organizações Globo, afirma que DJ Marlboro e Romulo Costa, os mega-empresários do funk, são os que “comandam o movimento, enquanto MC Leonardo e MC Júnior animam mais de 200 pessoas que se aglomeraram em frente à Alerj” - leia aqui e abaixo].

Representantes da APAFunk percorreram todos os gabinetes dos deputados estaduais, realizaram Rodas de Funk em diversas favelas (leia aqui e aqui matérias sobre as rodas na Cidade de Deus e no Dona Marta), uma na Praça XV e uma outra na Central do Brasil, procuraram ajuda dos intelectuais, brigaram quando tinham que brigar, exigiram que a PM respeitasse s direito de expressão e por aí foram. Romulo Costa e DJ Marlboro chegaram aos 45 do segundo tempo nessa disputa.

Uma pessoa muito especial e que merece ser lembrada sempre, sobretudo pela direção da APAFunk e pela massa funkeira, é a antropóloga Adriana Facina. Aliada de primeira hora, a professora da UFF teve uma participação fundamental em todo o processo. Além de ser uma voz em defesa de negros, pobres e favelados – a grande maioria de quem vive do funk – Adriana colocou todo o seu conhecimento a serviço de quem quisesse aprender. Os que quiseram foram os mesmos que fizeram história nesse 1o de setembro.

Marcelo Freixo, deputado do PSOL, foi mais que autor do projeto de lei que reconhece o funk como movimento cultural e estimula seu potencial pedagógico. O professor de História enfatizou a capacidade de luta da massa funkeira, que não se abateu diante da opressão: “A censura é burra, sempre. A censura nunca vence a criatividade do povo. Não funcionou com o rock, não funcionou com o samba, por que iria funcionar com o funk?”, disse, em sua intervenção.

Ao final da votação, os funkeiros, que assistiam a tudo das galerias, cantaram aquele que já se tornou um hino carioca: “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci. E poder me orgulhar, e ter a consciência de que o pobre tem seu lugar”. Os deputados pararam para ouvir, já que a junção das muitas vozes superava o som do microfone. “Uma vitória da democracia participativa”, afirmou Freixo.

Também acompanharam a votação Ivo Meireles, presidente da Mangueira, o cantor Neguinho da Beija-Flor e o delegado de Polícia Civil Orlando Zaccone, que sempre apoiou e promoveu rodas de funk nas delegacias que comandou. Depois da sessão, a massa funkeira foi curtir a vitória no Circo Voador.

Curiosidade: nunca se viu uma quantidade tão grande de deputados neofunkeiros como nesse dia 1o de setembro. Ficou parecendo que a lei derrubada fora aprovada por marcianos, e não pela atual legislatura.


quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Punir mais só piora crime e agrava a insegurança

Entrevista com Massimo Pavarini, um dos maiores criminólogos do mundo, autor - junto com Dario Melossi - de "Cárcere e Fábrica", um clássico da criminologia crítica.
O DPQ RECOMENDA!


Castigo mais duro, herança dos EUA de Reagan, transforma criminoso leve em profissional, diz professor de Bolonha


“É UM PECADO , uma ideia louca” a noção de que penas maiores de prisão aumentem a segurança. “Acontece o contrário. Penas maiores produzem mais insegurança”, diz o italiano Massimo Pavarini, 62, professor da Universidade de Bolonha e considerado um dos maiores penalistas da Europa. Ele dá um exemplo: “Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais profissional ele será quando voltar ao crime”.


MARIO CESAR CARVALHO - DA REPORTAGEM LOCAL - FOLHA DE SÃO PAULO


Ligado ao pensamento de esquerda, Massimo Pavarini diz que essa ideia de punir mais teve como origem os EUA de Ronald Reagan, nos anos 80, e difundiu-se pelo mundo “como uma doença”. A eleição de Barack Obama à Presidência dos EUA pode ser um sinal de que esse ideário se esgotou, acredita. Pavarini esteve em São Paulo na última semana para participar do congresso do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), onde deu a seguinte entrevista:


FOLHA - O sr. diz que o direito penal está em crise porque o discurso pró-punição está desacreditado e a ideia de ressocialização não funciona. O que fazer?

MASSIMO PAVARINI - O cárcere parecia um invento bom no final de 1700, quando foi criado, mas hoje não demonstra mais êxito positivo. O que significa êxito positivo? Significa que o Estado moderno pode justificar a pena privativa de liberdade. Sempre se fala que o direito penal tem quatro finalidades:
serve para educar, produzir medo, neutralizar os mais perigosos e tem uma função simbólica, no sentido de falar para as pessoas honestas o que é o bem, o que é o mal e castigar o mal.
Após dois séculos de investigação, todas as pesquisas dizem que não temos provas de que a prisão efetivamente seja capaz de reabilitar. Isso acontece em todos os lugares do mundo.


FOLHA - O que fazer, então?

PAVARINI - As prisões já não produzem suficientemente medo para limitar a criminalidade. Todos os criminólogos são céticos. O direito penal fracassou em todas as suas finalidades. Não conheço nenhum teórico otimista. Isso não significa que não possa haver alternativas. Há um movimento internacional em busca de penas alternativas. O que se imagina é que, se a prisão fracassou, a pena alternativa pode ter êxito punitivo. Há penas alternativas há três décadas e, se alguma pode surtir efeito, foi em algum momento específico, que não pode ser reproduzido em um lugar com história e recursos econômicos diferentes.


FOLHA - Numa conferência, o sr. disse que o Estado neoliberal, que começou na Inglaterra e nos EUA, não pensa mais em ressocializar o preso, mas em neutralizá-lo. Por que morreu a ideia de recuperar o preso?

PAVARINI - Já se sabia que não dá para ressocializar o preso. O problema é outro. Existe uma obra bem famosa dos anos 70, chamada “Nothing Works” [nada funciona]. O livro foi escrito quando [Ronald] Reagan era governador da Califórnia [1967-1975]. Ele criou uma equipe de cientistas, de todas as cores políticas, e deu-lhes um montão de dinheiro. A pergunta era muito simples: você pode mostrar que o modelo de ressocialização dos presos tem um êxito positivo? Os cientistas pesquisaram muito e no final escreveram “nothing works”. A prisão não funciona nos EUA, na Europa nem na América Latina. Nada funciona se você pensa que a prisão pode reabilitar. Não pode. O cárcere tem o papel de neutralizar seletivamente quem comete crimes.


FOLHA - Ele cumpre esse papel?

PAVARINI - Pode cumprir. O problema é que a neutralização do inimigo, a forma como o neoliberal vê o delinquente, significa o fim do Estado de direito. O primeiro problema é que você não sabe quantos são os inimigos. Essa é a loucura.
Os EUA prendem 2,75 milhões todos os dias. Mais de 5% da população vive nas prisões. São 750 presos por 100 mil habitantes. Há ainda os que cumprem penas alternativas. Esses são 5 milhões. Portanto, são 7,5 milhões na América os que estão penalmente controlados. Aqui no Brasil são 300 presos por 100 mil habitantes.


FOLHA - Há teóricos que dizem que nos EUA as prisões se converteram em um sistema de controle social.

PAVARINI - Sim, isso ocorre. O setor carcerário nos EUA é quase tão forte quanto as fábricas de armas. Muitas prisões são privadas. É um bom negócio. O paradoxo dos EUA é que em 75, quando Reagan começa a buscar a Presidência, os EUA tinham 100 presos por 100 mil habitantes. Após 30 anos, a taxa multiplicou-se por oito. Os EUA não tinham uma tradição de prender muito. Prendiam menos do que a Inglaterra.


FOLHA - O senso comum diz que os presos crescem exponencialmente porque aumentou a violência.

PAVARINI - Isso é muito complicado. Se a pergunta é “existe uma relação direta entre aumento da criminalidade e aumento da população presa?”, qualquer criminólogo do mundo, eu creio, vai dizer não. Os EUA não têm uma criminalidade brutal. Ela é comparável à criminalidade europeia. Eles têm um problema específico: o número elevado de casas com armas de fogo curtas. Um assalto vira homicídio.


FOLHA - Por que prendem tanto?

PAVARINI - Os EUA prendem não tanto pelo crime, mas por medo social. Essa é a questão. A origem do medo social é bastante complexa, mas para mim tem uma relação mais forte com a crise do Estado de bem-estar social do que com o aumento da criminalidade. É um problema de inclusão social. Os neoliberais dizem que não dá para incluir todas as pessoas que não têm trabalho, os inválidos, os que estão fora do mercado. Os criminosos são os primeiros dessa categoria. Uma regra que ajudou a aumentar a população carcerária foi retirada do beisebol: três faltas e você está fora. Em direito penal isso significa que após três delitos, que podem ser pequenos, você está preso. Você está fora porque não temos paciência para tratá-lo. Vamos eliminá-lo.


FOLHA - Eliminar é o papel principal das prisões, então?

PAVARINI - É um dos papéis. O direito penal é cada vez mais duro, as sentenças são mais longas, “life sentence” [prisão perpétua] é mais frequente, aplica-se a pena de morte.


FOLHA - Como essa ideia neoliberal funciona onde há muita exclusão?

PAVARINI - Vou dizer algo que parece piada: quando os EUA dizem uma coisa, essa coisa é muito importante. Podem ser coisas brutais, grosseiras, mas quem diz são os EUA. Como imaginar que na Itália e na França, que têm ótimos vinhos, os jovens preferem Coca-Cola?
Não se entende. É o poder dos EUA que explica isso. A ideia de como castigar, porque castigar e quem castigar faz parte de uma visão de mundo. Se a América tem essa visão de mundo, isso se reproduz no mundo.


FOLHA - É por essa razão que cresce o número de presos no mundo?

PAVARINI - Isso é um absurdo.
Dos 180 e poucos países do mundo, não passam de 10, 15 os que têm reduzido o número de presos. Na Itália, temos 100 presos por 100 mil habitantes.
Há 30 anos, porém, eram 25 por 100 mil. Aumentou quatro vezes em três décadas. Isso acontece na Ásia, na África, em países que não se pode comparar com os EUA e a Europa.
Creio que é uma onda do pensamento neoliberal, que se converte em políticas de direito penal mais severo. É engraçado que os EUA, nos anos 50 e 60, eram os mais progressistas em política penal, gastavam um montão de dinheiro com penas alternativas. Mas hoje as pessoas acham que o direito penal que castiga mais tem mais eficiência. Isso é desastroso. Nos EUA, o número de presos cresce também porque há um negócio penitenciário.


FOLHA - O que há de errado com esse tipo de negócio?

PAVARINI - Os EUA têm cerca de 15% dos presos em cárceres privatizados. É uma ótima solução para a empresa que dirige a prisão. Ela sempre vai querer ter um montão de presos, é claro, para ganhar mais dinheiro, e isso nem sempre é a melhor política. É um negócio perverso.
Os empresários financiam lobistas que vão difundir o medo.
É um desastre. Mas pode ser que tudo isso mude. Obama parece ter uma visão oposta à dos neoliberais e já demonstra isso na saúde pública, um tema ligado à inclusão social. O difícil é que não há uma ideia suficientemente forte para se opor ao pensamento neoliberal sobre as penas. A esquerda não tem uma ideia para contrapor. Os políticos sabem que, se não têm um discurso duro contra o crime, eles perdem votos.


FOLHA - No Brasil, os políticos e a população defendem o aumento das penas. Penas maiores significam mais segurança?

PAVARINI - Isso é um pecado, uma ideia louca, absurda. Acontece o contrário. Penas maiores produzem mais insegurança. É claro, um país não pode neutralizar todos os criminosos. Nos EUA, eles podem colocar na prisão o garoto que vende maconha. Prende por um, dois, cinco anos, e ele vai virar um criminoso profissional. Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais profissional ele será quando voltar ao crime. Há mais de um século se diz que a prisão é a universidade do crime. É verdade. Mas, se um político diz “vamos buscar trabalho para esse garoto”, ele não ganha nada.


FOLHA - No Estado de São Paulo, o mais rico do país, faltam 55 mil vagas nos presídios e as prisões são muito precárias. Por que um Estado rico tem presídios tão ruins?

PAVARINI - Há uma regra econômica que diz que a prisão, em qualquer lugar do mundo, deve ter uma qualidade de sobrevivência inferior à pior qualidade de vida em liberdade. Como aqui há favelas, as prisões têm de ser piores do que as piores favelas. A prisão tem de oferecer uma diferenciação social entre o pobre bom e o pobre delinquente. Claro que São Paulo poderia oferecer um presídio que é uma universidade, mas isso seria intolerável. O presídio ruim tem função simbólica.


FOLHA - Em São Paulo, o número de presos cresce à razão de 6.000 por mês. Faz sentido construir um presídio novo por mês?

PAVARINI - Mais cárceres significam mais presos. Se você tem mais presídios, você castiga mais. Por isso os países promovem moratórias, decidem não construir mais presídios.

FOLHA - Políticos dizem que mais presídios melhoram a segurança.

PAVARINI - A única coisa que você pode dizer é que mais presídios significa mais população presa. Há milhões de pessoas que delinqúem diariamente, e os presos são uma minoria. O sistema penal é seletivo, não pode castigar todos. As pessoas dizem que o crime não compensa, mas o crime compensa muito. O sistema não tem eficiência para castigar todos.
Quando você aumenta muito a população carcerária, algo precisa ser feito. Na Itália, há cada cada quatro, cinco anos há anistia. Entre os nórdicos, quando um juiz condena um preso, ele precisa saber a quantidade de vagas na prisão. Se não há vaga, outro preso precisa sair. O juiz indica quem sai. Porque é preciso responsabilizar o Poder Judiciário e a polícia pelos presídios. O cárcere tem de ser destinado aos mais perigosos. Uma prisão de merda custa 250 por dia na Itália. Não faz sentido usar algo tão caro para qualquer criminoso.