quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Provocações - Luis Fernando Veríssimo

A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão. A segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso. Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de medicamento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz. Foram provocando por toda a vida.

Não pôde ir à escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, ele gostava de roça. Mas aí lhe tiraram a roça. Na cidade, para onde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme, firme. Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Os que morriam eram substituídos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava.

Estavam provocando. Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça. Ouvira falar de uma tal de reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa. Terra era o que não faltava. Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma.

Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Pra valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação. Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou. Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu, espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele: Violência não!

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

A Nova Constituição da BOLÍVIA

A caminho do socialismo indo-americano

O referendo de 25 de janeiro de 2009 é um marco histórico na vida dos bolivianos. Pela primeira vez em 183 anos de vida republicana o povo é chamado a decidir sobre sua própria Constituição, a lei maior do país. E mais: nesses quase duzentos anos foram convocados apenas cinco referendos, sendo dois deles (40%) durante o governo Evo Morales Ayma, que tem apenas 3 anos à frente da administração pública.

A Constituição recém-aprovada contém muitos avanços, como a incorporação dos direitos dos povos originários, a eleição direta para juízes e o respeito à liberdade religiosa – antes a Bolívia era constitucionalmente considerada um Estado católico. Além disso, toda atividade econômica será dirigida e regulamentada pelo Estado, que também terá controle sobre os recursos naturais. Outro avanço é que pela primeira vez em sua história os bolivianos elegerão assembléias estaduais e os meios de comunicação ficam proibidos de constituir monopólios ou oligopólios. Ademais, fica proibida constitucionalmente a instalação de qualquer base militar estrangeira em território boliviano. 62% dos bolivianos votaram por este texto.

Nesse sentido, e por estar a Bolívia no centro da América Latina, pode-se dizer que foi dado um grande passo rumo ao que José Carlos Mariátegui chamou de "Socialismo Indo-Americano" - referência lembrada por Hugo Chávez durante o Fórum Social Mundial, em Belém.

Durante a campanha, era visível o esforço dos partidários do SIM em divulgar ao máximo o novo texto constitucional. Réplicas da Constituição eram panfletadas nas praças e pequenos comércios vendiam o texto a preços simbólicos (1 ou 2 reais, dependendo do tipo de encadernação). Por outro lado, a direita fez uma campanha suja e mentirosa. Dizia que se vencesse o SIM o governo iria tomar a casa de quem tinha duas ou mais casas – apesar de o artigo 57 garantir que as propriedades urbanas não estão sujeitas a expropriação. Um taxista me disse que votaria pelo NÃO porque a nova Constituição tomaria sua segunda casa, que ele pretendia alugar depois que se aposentasse. Também havia peças publicitárias afirmando que a nova Constituição não defende Deus e confrontando o presidente Evo Morales com Jesus Cristo. Ao final a mensagem afirmava: “Não seja cúmplice do pecado, vote NÃO”.

Com a entrada do presidente da República na campanha, o componente maior do referendo passou a ser a aprovação ou não do governo Morales. De um lado, o governo que erradicou o analfabetismo na Bolívia. De outro, o mesmo governo do ministro Juan Ramón Quintana, mantido no cargo ainda que diante das acusações gravíssimas de facilitação de contrabando. A direita, por sua vez, foi bastante identificada com os mandantes do massacre de Pando e com o episódio racista de humilhação contra indígenas em Sucre.

As análises que tenho lido nos jornais da direita se esforçam em afirmar que o país continua dividido. Que o NÃO venceu em 4 dos 9 estados (Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija). Que o governo perdeu votos em todo o país em comparação com o referendo revogatório do ano passado, quando Evo teve 67,4% de apoio popular.

No entanto, vale lembrar que o SIM venceu em outros quatro estados (La Paz, Potosí, Cochabamba e Oruro – houve empate em Chuquisaca), sendo que na região onde venceu estão 70% dos eleitores bolivianos. Houve também um nítido corte de classe: o SIM venceu entre os mais pobres e nas áreas rurais, enquanto o NÃO obteve mais votos entre os mais ricos e nas áreas urbanas. O país continua dividido, é verdade – ao contrário do que disse o Estadão: “Bolívia: Nova Carta dividirá o país, afirma estudo”, dois dias antes do referendo. Mas não considero justa a comparação com o referendo revogatório do ano passado. Uma coisa é votar pela manutenção de um presidente, outra completamente diferente é votar por uma Constituição com 411 artigos, sendo que mais de cem foram revisados 17 vezes. Por outro lado, se voltarmos a 2005 (eleições presidenciais) e 2006 (assembléia constituinte), quando o MAS teve 54% e 52%, respectivamente, pode-se dizer que houve um crescimento do apoio a Evo Morales.

Agora, por aqui todos parecem concordar em um ponto: a nova Constituição não vai impedir novos conflitos. O tema relativo à terra, por exemplo. No mesmo dia 25 de janeiro de 2009 os bolivianos votaram no tamanho máximo que deve ter a propriedade rural. Entre 10 mil hectares e 5 mil hectares, este venceu com 80,66% dos votos. Um claro sinal de que a maioria dos cidadãos está contra o latifúndio. Apesar disso, vale lembrar, este foi um tema em que a esquerda cedeu. A direita conseguiu garantir a manutenção da posse das terras adquiridas antes da entrada em vigor do novo texto constitucional, mas a partir de agora deverá garantir a função econômica e social para que não sejam expropriadas com fins de Reforma Agrária.

Na semana posterior ao referendo foram noticiados conflitos em duas regiões de Santa Cruz: Guaraios e San Julián. Ainda não dá pra saber exatamente o teor desses conflitos, além de que se trata de um embate entre camponeses sem-terra e latifundiários, mas o fato é que se somam à tomada por grupos sem-teto de imóveis da empresa nacionalizada Transredes, na zona urbana do mesmo estado. O governador de Santa Cruz, Rubén Costas, anunciou a “formação de um Comitê Interinstitucional de Segurança Cidadã, para evitar mais invasões no estado”.

Neste domingo, 1 de fevereiro de 2009, a oposição celebra mais um escândalo envolvendo o governo. Santos Ramírez, um dos principais dirigentes do MAS, muito próximo a Evo, foi demitido da presidência da YFPB, a estatal petroleira boliviana. Contra ele pesa a acusação de ser destinatário de uma propina de 450 mil dólares, apreendidos com um empresário de Tarija. Apesar de Ramírez ter ido a público negar a acusação, Evo decidiu demiti-lo afirmando que seu governo não vai tolerar corrupção, “caia quem caia”.

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Na Bolívia, a democracia é participativa


A Bolívia vive um momento extraordinário. Os movimentos sociais, no campo e na cidade, crescem como nunca. Desde as marchas indígenas da década de 1990 até a eleição de Evo Morales, em 2005, e a aprovação da nova Constituição, este ano, o aspecto em comum, sem dúvida, é o protagonismo do povo organizado.

“Antes os partidos da direita compravam meu voto por comida. Agora isso acabou”. É muito comum ouvir isso pelas ruas de La Paz. E além de isso ter acabado, o fato é que o povo boliviano, de maioria indígena, encontrou seu próprio partido, o MAS (Movimento ao Socialismo), e seu próprio líder político, Evo Morales Ayma.

O presidente costuma dizer ao povo que está lá para obedecê-lo. Não é mentira, o que por vias tortas pode ser comprovado pela oposição. São freqüentes as reclamações da direita, expressadas pelas corporações de mídia daqui, de que “movimentos sociais participam de reuniões com ministros”. O ar é de incredulidade. O povo, os índios, ocuparam o Palácio de Governo e não pretendem sair de lá tão cedo. Além do presidente, hoje são ministros, vice-ministros, parlamentares, chefes de empresas públicas e etc. “Este processo é irreversível”, costuma dizer Evo.

A medida do crescimento do movimento popular organizado tem no MAS sua melhor explicação. Este partido está no centro das recentes transformações vividas pelo povo boliviano. Fundado em 1994, era constituído por quatro organizações apenas: Confederação Sindical de Trabalhadores Rurais, Confederação dos Povos Indígenas, Confederação de Mulheres “Bartolina Sisa” e Confederação de Colonizadores. E o nome do MAS era outro: Instrumento Político para a Soberania dos Povos (IPSP). Mudou de nome simplesmente porque impediram o registro eleitoral como IPSP, enquanto a sigla MAS, já registrada, foi entregue aos futuros condutores da revolução democrática e cultural.

Apenas três anos após sua fundação, em 1997, os povos originários elegem Evo Morales para o Congresso, junto com outros três companheiros. Dois anos depois já eram 35 os deputados masistas, enquanto que em 2005 esse número duplicou. No mesmo ano Evo Morales era eleito o primeiro índio presidente da Bolívia.

Uma característica da democracia participativa é a convocação do povo a instâncias de decisão coletiva, como por exemplo a figura do referendo. Das cinco consultas deste tipo realizadas desde a Independência, em 1825, três delas (60%) ocorreram após a fundação do MAS (sendo dois durante seu governo). Em 2004 o povo foi chamado a opinar sobre as regras da exportação de gás, em 2008 para decidir sobre a revogação do mandato do presidente e dos governadores, e em 2009 para aprovar a Constituição Política de Estado.

No período anterior aos referendos do século XXI, entretanto, o movimento indígena não esteve parado. Até que chegasse à vitória no referendo de 25 de janeiro de 2009, foram anos de luta. Pelo menos duas datas ficaram marcadas, tanto pela gravidade dos conflitos quanto por sua importância. Em Cochabamba (2000), para impedir a privatização da água, e em La Paz (2003), para derrubar o governo neoliberal de Gonzalo Sanchéz de Lozada, o Goni, hoje acusado de ser o principal responsável pela morte de 67 manifestantes.

Hoje é muito comum encontrar cartazes com a foto de Goni espalhados por muros, postes e sindicatos, acompanhada da inscrição “Assassino! Extradição já!”, pois o ex-presidente vive em Miami. Segundo se conta por aqui, Goni esteve envolvido em fraudes milionárias. De acordo com o ex-ministro de Hidrocarburos, o escritor Andrés Soliz Rada, Goni é membro da “Society of the Americas”, organizada por David Rockefeler e mais conhecida como “governo mundial”; é dono da Compañía Minera del Sur em sociedade com o Banco Mundial; e sócio da gigante inglesa Rio Tinto Zinc, maior distribuidora de cobre do mundo, as duas com interesses na Bolívia. De acordo com a declaração oficial de bens, em apenas um ano (2002 a 2003) Goni teve sua conta bancária aumentada em 9 milhões de dólares. (Essas informações estão no livro “La Fortuna del Presidente”, de Andrés Soliz Rada, publicado em La Paz, 2004).

No último Congresso do MAS, o sétimo, realizado mês passado em Oruro, seis novas organizações se uniram ao partido. Entre elas a poderosa Central Obrera Regional de El Alto, que sempre manteve postura crítica – pela esquerda – ao governo Morales, e a Fecomin, federação de trabalhadores mineiros que congrega nada menos que 40 mil filiados.

As últimas mobilizações de massa na Bolívia ocorreram em outubro do ano passado, com o objetivo de pressionar o Congresso pela aprovação do referendo da nova Constituição. Centenas de milhares de pessoas marcharam desde Oruro até La Paz, numa caminhada de 199 km que a apresentadora do canal estatal classificou como uma “interminável coluna humana”. Quando chegaram na Praça Murillo disseram: “Só saímos daqui quando os deputados aprovarem a convocação do referendo. Se não aprovarem, tomamos o Congresso”. Os parlamentares realizaram sessões extraordinárias no sábado e domingo e a lei do referendo que estava estancada há vários meses foi aprovada em 24h. Durante a campanha, novas manifestações reuniram multidões e conduziram à aprovação da nova Constituição, que nas palavras de Evo é “anti-colonial, anti-neoliberal e anti-imperialista”.

Sobre as recentes mobilizações na Bolívia, um dirigente-fundador do MAS ressalta que foi o movimento indígena quem ofereceu a oportunidade histórica para a esquerda tradicional. Ivan Iporre hoje é chefe da Secretaria Nacional de Administração de Pessoal. Quando chegou, o número de funcionários públicos formados em diversos cursos era de 2.600. Hoje, três anos depois, é de 13.200. Vem gente do mundo todo, especialistas como a argentina Isabel Rauber, para ministrar cursos de visão estratégica, formação política e administração pública. Até parlamentares participam. Sob a administração de Ivan, a filosofia que rege todo o processo é a “interculturalidade”, cujo objetivo é conhecer a si próprio, ao outro, e assim caminhar rumo à descolonização interna – já que anos de opressão colonial terminam por alterar a percepção que o cidadão tem dele mesmo.

Nesse sentido pode-se dizer que a Bolívia vive uma krisis, palavra grega que significa “mudança”. Não sei se Evo Morales pensou nisso quando cunhou o termo “processo de cambio” (processo de mudança), mas o fato é que para além da derrota imposta aos neoliberais, estamos assistindo a um país que rapidamente modifica suas estruturas de poder, passando de uma democracia representativa – onde a participação popular se resumia ao voto de tempos em tempos – para uma democracia participativa, em que o povo não mais aceita viver com essas migalhas. Ele agora participa das principais decisões políticas do Estado, que refletem suas convicções, como o respeito à Pachamama e aos princípios de dignidade, solidariedade, complementariedade e harmonia, bem como a garantia de acesso universal aos direitos básicos (água, energia e saneamento) e a nacionalização dos recursos estratégicos e riquezas naturais. A classe trabalhadora boliviana (indígenas, mineiros, operários e etc.) não quer impor ao antigo senhor a mesma condição violenta a que foi submetida. Mas já deixou bem claro que está disposta a lutar até a morte diante do menor sinal de retorno à dominação capitalista.

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Ambos os textos por Marcelo Salles, de La Paz - salles@fazendomedia.com
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