quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Operários Ocupam Fábrica Nos EUA

Tomada de fábrica por operários vira luta nacional nos EUA

A tomada de uma fábrica por seus trabalhadores demitidos em Chicago se converteu em um símbolo nacional de que o resgate do setor financeiro por Washington não se traduziu em um apoio para as maiorias. Desde o presidente eleito Barack Obama e parlamentares federais e locais até o governador de Illinois já expressaram apoio às demandas dos operários.

David Brooks - La Jornada

Tudo começou quando os 260 operários da fábrica de janelas e portas Republic Windows and Doors foram informados por seus patrões, com apenas três dias de antecedência, do fechamento da indústria, previsto para o fim de semana passado. O fechamento ocorreu depois que o Bank of America suspendeu sua linha de crédito à indústria.

Na sexta-feira, dezenas de trabalhadores tomaram a fábrica e se negaram a deixá-la, pois denunciam que não foram notificados com os 60 dias de antecipação previstos em leu e não lhes pagaram o que deviam.

Em turnos, dezenas de trabalhadores, membros do sindicato nacional independente United Electrical, Radio and Machine Workers of America (UE), um dos mais progressistas e combativos do país, mantiveram guarda dentro da fábrica, enquanto recebiam visitas ilustres, desde o senador Dick Durbin, o segundo em importância na Câmara Alta do parlamento americano, até os representantes federais Luis Gutiérrez e Jan Schakowksy, e o reverendo Jesse Jackson.

A maioria dos trabalhadores são de origem mexicana, junto com um bom número de trabalhadores negros e alguns salvadorenhos e hondurenhos.

No domingo, Obama disse: "creio absolutamente que os trabalhadores, que pedem os benefícios e os salários pelos quais trabalharam, estão corretos, e entendo que o que lhes acontece é um reflexo do que ocorre em toda a economia".

Nesta terça-feira (9), o governador de Illinois, Rod Blagojevich, ordenou que as secretarias estaduais suspendam todos os negócios com o Bank of America até que este reverta sua decisão e abra uma linha de crédito para a empresa Republic. "Que tome parte do dinheiro federal que recebeu e o invista, para dar crédito necessário para esta empresa, conservando assim os empregos dos trabalhadores", manifestou.

"O Bank of America recebeu recentemente uma injeção de US$ 25 bilhões de fundos públicos e agora é um exemplo de como, enquanto se resgatam os grandes bancos, os trabalhadores são demitidos sem receber seus salários", afirma o sindicato.

O senador Durbin declarou aos meios de comunicação: "entregamos bilhões a bancos como o Bank of America, e a razão para isso era para que continuassem emprestando esses fundos a empresas como a Republica, para que não fossem perdidos postos de trabalho aqui nos Estados Unidos".

Enquanto os gerentes da empresa não aparecem, o Bank of America reiterou que não é responsável pelas práticas e decisões da Republica. Mas a ira dos trabalhadores se dirige tanto a seus patrões como também — e é aqui onde encontra eco nacional — contra um resgate financeira que só beneficia os executivos bancários e deixa em completo abandono milhões de trabalhadores, que padecem as conseqüências desta crise.

"Se não houver uma solução favorável, estamos dispostos a permanecer aqui pelo tempo que for necessário", comentou Leticia Márquez Prado, uma das trabalhadoras membro do sindicato em entrevista telefônica dada ao correspondente do La Jornada. Ela disse que as demandas mínimas eram o pagamento da demissão e das férias, entre outras remunerações que são devidas aos trabalhadores, mas que se desejava buscar uma forma de manter a fábrica em operações, cujo negócio foi impactado de forma severa pela crise econômica, particularmente no setor da construção

"O pior disso é que os trabalhadores estavam recebendo salários dignos, com benefícios de seguro de saúde e outros, e se perdem esses empregos só encontrarão, se encontrarem, empregos de salário mínimo e nenhum benefício", explicou Leticia.

Estava programada uma reunião entre representantes dos trabalhadores, da empresa e do banco para esta noite, a fim de tentar negociar uma solução.

Enquanto isso, o que seria uma notícia local, neste conjuntura se tornou um assunto nacional. Na noite de segunda-feira os telejornais das três principais cadeias de televisão colocaram reportagens sobre a ocupação em suas manchetes principais. Meios de comunicação nacionais eletrônicos e impressos caracterizaram esta ação como algo que se tornou "símbolo" do que estão padecendo os trabalhadores que perderam seus empregos durante esta crise ao longo do país (quase 2 milhões foram demitidos desde dezembro de 2007; mais de meio milhão somente em novembro).

Surpreendidos por todo alcance nacional, um dos trabalhadores, Melvin Maclin, também dirigente do sindicato, declarou à agência de notícias AP que "Nunca esperávamos isso. Ao contrário, achavamos que iriamos para a cadeia".

A ação gerou solidariedade entre vários sindicatos locais e nacionais, organizações civis e comunitárias, que prestaram apoio material e se somaram à campanha dos trabalhadores, que se revezam na ocupação 24 horas por dia.

A polícia não agiu e declarou que não tem nenhuma queixa de "atividade ilegal". "Não vamos nos mover", afirmou Melvin à CBS News. "Já é hora de nós, os pequenos, ficarmos de pé".

Silvia Mazon, outra trabalhadora, comentou no New York Times que "querem que os pobres continuem lá embaixo. Pois aqui estamos e não vamos a nenhum lugar até que nos dêm o que é justo e o que nos pertence". "Estamos fazendo história", disse, em outra entrevista.

Quase ninguém se lembra de quando foi a última vez que os trabalhadores tomaram uma fábrica nete país (talvez tenha ocorrido no fim dos anos 1980, quando mineiros de Virginia tomaram uma usina de processamento durante uma greve) e muitos dizem que o fato lembra cenas dos anos 1930, quando em Chicago e outras grandes cidades a militância sindical industrial sacudiu e transformou este país.

Talvez seja uma fagulha de algo novo (ou o ressucitar de algum mártir de Chicago).

domingo, 7 de dezembro de 2008

Greve na UERJ

A greve na UERJ começou no dia 8 de setembro por força de uma deliberação coletiva em uma assembléia docente. Semanalmente, ocorrem assembléias de professores convocadas pela entidade representativa dos docentes, a ASDUERJ, onde a manutenção ou fim da greve é deliberado pelo voto. A adesão ao movimento é de aproximadamente 75%. A greve, que marcou o divórcio da comunidade acaêmica com o Reitor, reivindicava mais verbas para a UERJ – depois de anos de cortes, insuficiente até para a manutenção da universidade no estado em que ela se encontra – o reajuste salarial e o Plano de Carreira Docente (PCD). Sobre o PCD, a história é longa...

O PCD
Em 2007, foi aprovado pelo Conselho Universitário (órgão deliberativo máximo da UERJ) um Plano de Carreira Docente que previa a progressão salarial por tempo de serviço para estimular o professor a desenvolver sua carreira dentro da Uerj, como também o regime de dedicação exclusiva para alguns professores, já utilizado por todas as universidades públicas do estado (inclusive a outra estadual, a UENF). Entretanto, este plano que contava com apoio quase unânime da comunidade universitária, foi deixado de lado em 2008 após a posse da nova Reitoria.
Acontece que o Reitor possui laços políticos de aliança com o governador e seu grupo. Basta ver que um dos três membros da comissão formada por Vieiralves para negociar com os estudantes ocupados, Marcelo Costa (seu orientando de doutorado) acaba de ser nomeado pelo recém eleito Prefeito, Eduardo Paes, Secretário de desenvolvimento econômico. A própria história de Vieiralves também demonstra esses laços (veja na pág. 7). Devido a essa relação política, a Reitoria, que deveria agir em defesa dos interesses da comunidade acadêmica, começou a agir em conjunto com o Governador. No caso do PCD, o resultado dessa postura de subserviência ao governo foi que Reitor e Governador elaboraram outro Plano, sem dedicação exclusiva e sem reajuste até pelo menos 2011, e enviaram o fruto dessa união ao legislativo estadual para aprovação. O Plano aprovado no Conselho Universitário com o consenso dos conselheiros e da Asduerj foi para o lixo, a despeito das assembléias que, por ampla maioria, decidiram reivindica-lo.

O Orçamento
Mas voltando à questão do orçamento, cabe lembrar que, pela primeira vez na história da Uerj, a própria Reitoria cortou parte do orçamento para o ano que vem. Ainda na etapa de votação e aprovação da Proposta Orçamentária, o Reitor encaminhou no Conselho Universitário que a Uerj deveria solicitar ao governo uma quantia de no máximo 6% da arrecadação tributária líquida do Estado. Segundo o Reitor, era uma forma de “respeitar” o parágrafo primeiro do artigo 309 da Constituição Estadual. No entanto, ficou claro que, das duas, uma: ou ele não leu direito o artigo, ou ele quer se fingir de bobo e defender os interesses do Governador dentro da Uerj. Veja o que diz a Constituição:

§ 1º - O poder público destinará anualmente à Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, dotação definida de acordo com a lei orçamentária estadual nunca inferior a 6% da receita tributária líquida, que lhe será transferida em duodécimos, mensalmente.

Assim, o próprio Reitor da Uerj estipulou que o primeiro corte orçamentário da universidade teria que ser feito pelo ConsUni, já que a proposta orçamentária da Uerj não deveria ulytrapassar aquilo que a Constituição Estadual claramente chama de mínimo.
Pouco tempo depois dessa atrocidade, o governador ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade em face deste artigo, conseguindo uma liminar suspendendo sua eficácia. Logo após, anunciou o orçamento previsto para a Uerj no ano que vem: o equivalente a cerca de 2% da arrecadação tribuntária líquida do Estado, ou seja, novo recorde: mais da metade da verba que a Uerj precisa não virá para a universidade...
Com isso, a situação se agrava. Nada de reajuste real, nada de melhorias, nada de concursos. Os salários dos profissionais da Uerj continuarão defasados e muito menores do que os da UFRJ, CEFET e demais universidades públicas, os estudantes continuarão assistindo seus professores indo embora e a universidade corre um sério risco de acabar como está a maioria das escolas estaduais. É contra isso que os grevistas lutam.

O DPQ entrevistou dois professores da Faculdade. Um contra a greve (Arthur Gueiros) e um a favor (Rodrigo Lichowsky). Leia as entrevistas abaixo.


- Professor Arthur Gueiros, o que o senhor acha da situação da greve, atualmente?
Prof. Artur Gueiros: Bom, do que eu vejo, depois de tantos anos, é que cada greve tem uma história. Essa, particularmente, é uma greve que não está, aparentemente, mobilizando a comunidade da universidade. Então, como outras greves tiveram outras peculiaridades, essa é uma greve que não está ganhando adesão, na minha opinião, da comunidade universitária, em geral.

- E a situação da UERJ?
Prof. Artur Gueiros: A situação da uerj é uma situação crítica, há problemas graves aqui, há necessidade de um melhor investimento, uma recuperação da infra-estrutura, bem como do salário dos profissionais que aqui trabalham e a expectativa é que os governantes olhem com mais cuidado a uerj e que de fato aportem mais capital, já que a uerj está precisando realmente de uma melhora.

- E o sobre o direito de greve, abstratamente, o que o senhor pensa?
Prof. Artur Gueiros: O direito de greve é um direito assegurado na constituição, tanto para a iniciativa privada como para o serviço público. Eu acho que, abstratamente, é próprio da democracia o direito de greve, mas é, na minha opinião, o último recurso que se deve utilizar, ou seja, quando findarem todas as negociações. Do que eu pude acompanhar, as negociações com o governo do estado nãoestavam encerradas, então, na minha opinião, teria havido um certo açodamento. O problema da uerj é um problema de décadas e talvez a greve não fosse o momento adequado, deveria se avançar mais nas negociações, antes de se adotar essa atitude extrema. Essa é uma opinião respeitando opiniões de outros colegas.

- Então, só para concluir a segunda pergunta, o senhor acha que, no momento, a greve não é adequada?

Prof. Artur Gueiros: Bem, a greve já tem algum período. Eu acho que o momento em que ela foi iniciada foi um momento em que estavam sendo discutidas as pretensões. O governo fez uma proposta, uma proposta evidentemente que admitindo contrapropostas, então ainda estava num processo natural de negociação. Então, acho que não foi um momento, na minha opinião, adequado. Só depois de encerrada a negociação é que se deve, na minha opinião, partir para um extremo de fazer greve, porque em toda greve alguém sai prejudicado. Na greve de transportes, quem pega ônibus pra voltar pra casa é prejudicado, na greve de hospitais, quem precisa de hospital de saúde é prejudicado e, na greve da universidade, tem também um prejudicado e esse prejudicado, na minha opinião, são os alunos.


Prof. Rodrigo Lychowski:
1. Como definir a situação atual na UERJ?
Antes de mais nada, devo dizer que eu tenho um grande carinho pela UERJ, pois para mim, ela é uma espécie de segundo lar. É que eu entrei como aluno de graduação em 1986, terminei o bacharelado em Direito em 1990; posteriormente cursei o Mestrado em Direito da Cidade no período de 1991/1994, lecionei como professor substituto de diversas disciplinas em 1993 e dede março de 1999 leciono a disciplina Direito do Trabalho. Enfim, são 22 (vinte e dois) anos de UERJ, ao passo que tenho 40 anos de idade!
Quanto ao quadro atual da UERJ, falando em termos objetivos, o quadro é bastante difícil. Vejo hoje uma UERJ dividida em dois grupos: de um lado, os que têm uma concepção coletiva e social, e que tem consciência do seu papel na formação de jovens que irão mudar o futuro do Rio e da nação, enfim que atuam como verdadeiros servidores públicos, do povo; e de outro, infelizmente, docentes e servidores que tem uma postura individualista, que parecem não ter consciência da enorme responsabilidade de lecionar e trabalhar em uma universidade pública. No fundo, a greve não é tratada como um direito (fundamental), mas sim como um delito, quase como se fosse uma "questão de polícia". Também me incomoda profundamente que, apesar da greve ter sido deflagrada através da vontade livre e da maioria dos docentes, servidores (e alunos que apoiaram a greve), em algumas unidades - como a Faculdade de Direito - há o funcionamento normal das atividades, o que para mim nada mais é do que a prevalência da vontade da minoria em detrimento da vontade da maioria. Outro aspecto relevante que ser mencionado foi o fato de que o plano de carreira foi enviado pelo Governador ao Magnífico Reitor, e não à ASDUERJ. O Governador desconsiderou o plano de carreira docente aprovado pelo CONSUNI em dezembro de 2007, e em seu lugar, nos bastidores, elaborou um plano - sem ouvir a ASDUERJ - e que fere o princípio da isonomia, já que prevê aumentos diferenciados para as diversas categorias de professores (de auxiliar à titular). Isto sem falar no fato de que o reajuste será concedido em 07 parcelas até 2011! E os servidores e docentes da UERJ estão sem reajuste há 08 (oito) anos!
Assim, no meu modesto pensar, o plano de carreira docente enviado pelo Governador carece de legitimidade e é de constitucionalidade duvidosa.


2. Greve como instrumento de reivindicação
Como eu dizia no início, em nosso país e em muitos outros, apesar de reconhecida como direito coletivo dos trabalhadores no texto constitucional, na realidade fática o direito de greve não é tratado como direito, mas como um delito, como algo nefasto. É evidente que ninguém gosta de deflagrar greve ou sofrer os efeitos de uma greve, por exemplo, os alunos e a sociedade civil. Todavia, muitas vezes, e me parece ser este o caso da UERJ, a greve é o último recurso dos trabalhadores e servidores para pressionar o empregador privado ou público, de forma que este atenda as suas reivindicações. Enfim, quando a negociação coletiva é inviável, os trabalhadores e servidores se reúnem em assembléia e decidem, pela maioria de votos, como a sua última forma de pressão, não trabalhar. Foi isto que ocorreu na UERJ. Tentou-se um ano e meio a negociação com o Governador que, não obstante ter prometido em campanha o reajuste salarial para os servidores da UERJ e a chamou de "jóia da coroa", o Governador Cabral jamais recebeu a ASDUERJ ou o SINTUPERJ. Diante dessa recusa, após 07 (sete) anos sem reajuste, de forma livre e majoritária - disso eu sou testemunha - os servidores e docentes decidiram pela deflagração da greve.

3. Legitimidade do direito de greve
Antes de falar sobre sua legitimidade, é importante ressaltar que a greve tem a natureza jurídica de um direito coletivo - e não individual - dos trabalhadores e servidores, que importa em não trabalhar, como último meio de pressão.
A legitimidade da greve se afere pela forma como ela é deliberada, pelos motivos que acarretaram a sua deflagração. Assim, legítima será a greve quando os trabalhadores e servidores esgotarem todas as tentativas de negociação coletiva com o empregador privado ou público. Legítima também será a greve, cujo fundamento seja a melhoria social de uma categoria profissional, como, por exemplo, reajuste salarial, melhores condições de trabalho, fim de assédio moral no local de trabalho. Por fim, quando a greve é decidida pela vontade da maioria da categoria, ou seja, quando a vontade coletiva de uma categoria de trabalhadores ou servidores quer fazer greve, aí então teremos uma greve legítima. Ora, todos esses três requisitos foram observados na greve deflagrada na UERJ, o que a torna legítima.
É bom lembrar também que a greve desempenha um papel político lato sensu relevante. Assim, as greves no ABC, lideradas pelo então operário Lula, assim como a greve geral deflagrada pelo Sindicato "Solidariedade" na Polônia, sob a liderança de Lech Walesa, foram fundamentais para a volta à democracia nesses dois países.

sábado, 6 de dezembro de 2008

A Saga dos Quilombolas

O direito ao reconhecimento do território quilombola está consagrado na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e foi incorporado pela Constituição brasileira de 1988 em seu Art. 68, do Ato das Disposições Transitórias. O dispositivo garante o direito à aquisição dos títulos de propriedade referentes a estas terras, mas não estabelece o procedimento, ficando este a cargo de regulamentações infraconstitucionais.

A primeira regulamentação veio em 1995, através da Portaria 307, que vigorou até 1999, quando a competência da titulação foi delegada ao Ministério da Cultura. Essa regulamentação permitiu a titulação de 19 terras quilombolas. No entanto, em 2001, vem o primeiro balde de água fria. O Decreto 3.912, de Fernando Henrique Cardoso, restringiu a possibilidade de aquisição dos títulos às comunidades remanescentes que ocupavam o território no ano de 1988, cujas terras eram ocupadas por quilombos em 1888, excluindo aquelas que, em razão de conflito, não estavam na posse do território na época.


Avanço:

Em 2003, Lula editou o Decreto 4887/03, que não só trouxe o critério da auto-identificação, já reconhecido na Convenção de 169, mas permitiu a desapropriação em caso de conflito e, por fim, confiou a condução do processo ao INCRA.


Reação:

O Partido da Frente Liberal (PFL), hoje conhecido como DEM, propôs, no ano seguinte, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3239) contra o Decreto, questionando tanto o critério adotado para a identificação das terras quilombolas, quanto a possibilidade de desapropriação. A imprensa, por sua vez, acusou o governo de ir além do direito garantido pela Constituição, ao fixar um critério vago para o reconhecimento dessas terras. Formalmente, o Decreto era taxado de inconstitucional, por violar diretamente preceito constitucional, e, substancialmente, era criticado por favorecer em demasia as comunidades remanescentes, causando insegurança jurídica ao setor agrário.


Retrocesso:

O INCRA publicou recentemente a Instrução Normativa 49/08, que regulamenta o procedimento de identificação das terras quilombolas. Seu texto foi fruto de um relatório do Grupo de Trabalho coordenado pela Advocacia Geral da União, que tinha a finalidade de dar uma resposta à questão quilombola, mas para muitos acabou significando um passo a traz.

Segundo Daniel Sarmento (Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Procurador Regional da República), a consulta feita às comunidades quilombolas a respeito dessa nova regulamentação foi falha, desrespeitando o direito assegurado na Convenção 160 da OIT à participação das mesmas neste tipo de procedimento. Além disso, a nova Instrução Normativa burocratizou excessivamente o processo de titulação das terras quilombolas, tornando-o mais demorado. Outro problema que ele aponta é a competência dada a Casa Civil de dar a decisão final nos casos de conflito, como o da Marambaia, no qual a Marinha também reivindica o território ocupado pela comunidade. Ele alega que, quando o processo de reconhecimento das terras quilombolas é resolvido tomando em conta critérios políticos, o seu significado, a sua razão de ser, como forma de tutela de direitos, é esvaziado, pois esta passa a estar submetida a fatores políticos. O Professor entende que a Instrução Normativa 49/08 foi na verdade uma forma de dar uma resposta à questão quilombola, que vinha ganhando grande repercussão.


Segue abaixo entrevista com os quilombolas Adriano (Comunidade Marambaia) e Luiz Sacopã (Comunidade Sacopã):


- Qual a importância para as comunidades do reconhecimento das terras quilombolas?

Adriano – O reconhecimento é importante, porque a partir dele que as comunidades vão poder viver com mais tranqüilidade, num sistema mais harmonioso. Enquanto essa definição não ocorre, as comunidades vivem sofrendo pressões enormes.

Luiz Sacopã – A partir do momento que há esse reconhecimento, já é uma forma de amenizar esse sofrimento de quatrocentos e poucos anos, que só nós temos noção.Na prática isso é discutido nos segmentos sociais, na mídia, mas só nós sabemos o que passamos.


- Como é o panorama no Brasil de reconhecimento de terras quilombolas? Já existe alguma comunidade estabilizada?

Adriano – No Brasil eu não sei, mas no Rio de Janeiro só há uma comunidade já titulada, a Campinho da Independência.O resto se encontra ainda com processos em tramitação, e agora veio essa nova instrução normativa, que burocratizou o processo trazendo mais problemas para nós.


- A luta das comunidades é pelo reconhecimento do território quilombola, no entanto a Instrução normativa 49/08 reconhece a área ocupada. Como vocês vêem isso?

Adriano – A Instrução Normativa desconsidera a Convenção 169 da OIT.Ela faz com que o território quilombola envolva apenas uma espécie de “quintal”.No entanto ele abrange um espaço utilizado para roça, culto, ou seja, um espaço além. Foi uma mudança para pior.

Luiz Sacopã – No caos inclusive da comunidade Sacopã, existe uma caverna que é o símbolo do quilombo e ela está separada da área ocupada.



- Esse critério resulta então numa diminuição do reconhecimento cultural dos quilombolas ?

Luiz Sacopã – Tem inclusive quilombos que têm cemitérios. A própria ruína da senzala, que pertence à comunidade, não estaria abrangida.


- Como é a relação das comunidades em fóruns, espaços de integração ?

A Aquilerj organiza um encontro anual, onde os representantes das comunidades participam, trazem suas demandas, suas informações, além dos outros encontros menores. Nesse, são realizadas assembléias para discutir questões que precisam de uma aprovação, como eleição de diretoria.


- Quais seriam essas demandas?

Existem pontos comuns, como a reclamação a respeito da pressão de grileiros, de não-quilombolas, que alegam ter direito sobre a terra e vão estreitando cada vez mais a área quilombola. Além disso, com relação às políticas públicas, algumas comunidades não têm energia, outras estão impedidas de receber qualquer tipo de projeto.Esta é uma forma de pressão para fazer com que as pessoas da comunidade se sintam no pior lugar do mundo e queiram sair dela.


- Por que a questão quilombola incomoda tanto ?

Adriano – Na Constituição de 1988, quando os constituintes incluíram o Art. 68, acredito que a grande maioria pensava : “ Nós temos o quilombo Zumbi dos Palmares e mais um ou dois”.Só que a constatação de que o número era muito maior(são apontadas 3.000 comunidades, mas o número chega a 5.000)criou um certo desespero, eles pensaram : “Vamos ter que dividir o país com esse povo que não tem direito a nada”.Esse ´povo no entanto é o que não teve nenhuma indenização, saiu em direção ao nada, sem casa, emprego.Passados alguns anos, descentes dessas pessoas tem acesso a alguma coisa e isso incomoda. Diante dessa demanda maior do que se esperava, tomou-se então a atitude de conter.


Luiz Sacopã – A partir do momento que essa classe dominante, que tem tráfico de influência, pela primeira vez se sente ameaçada, está usando de todos os artifícios para nos derrubar.Pensavam que iam titular 4 ou 5 famílias quilombolas, mas são milhares. E eles não conhecem o Programa Brasil Quilombola, porque o que eu vejo hoje em debates deles é a não caracterização do quilombola, da regularização fundiária. Porque vamos supor, o cara mora ali há 40 anos, então eles acham que para que seja reconhecido como quilombola, tem que ter uma senzala, uma corrente. O quilombola não é isso, é uma resistência, tem a ver com sua ancestralidade.será que se fossem os remanescentes dos nossos colonizadores, eles estariam sendo incomodados?

A comunidade afro-descendente tem que tomar uma atitude.Se nós não aproveitarmos esse governo, jamais vamos ter condições de respirar no futuro, pois a classe dominante permanece aí e esse modo de dominação dela é antigo e bem mais forte do que nós somos.


- A modificação da Instrução Normativa, além de trazer dificuldades, faz com que o estudo antropológico tenha que ser uma tese muito bem elaborada. Dito isso,como vocês vêem a importância da cultura negra ser retomada como próprio objeto de estudo acadêmico? Qual a relevância de você ter uma universidade pesquisando e pensando a questão quilombola?

Adriano – É importante, porque surge a possibilidade de dar continuidade a cultura e levantar questões esquecidas. A partir do momento que a universidade começa a pesquisar, envolvendo a participação das comunidades nas discussões. Isso resulta num crescimento.Para a comunidade negra, o aumento da auto-estima é fundamental, e para que isso aconteça, é necessário que ela conheça um pouco mais de sua origem.A pesquisa pode oferecer isso.

Luiz Sacopã – Essa Instrução Normativa chegou para dificultar, pois os trabalhos antropológicos são para confirmar algo que já existe e não para discutir se é legítimo. O governo deixou que essa regulamentação fosse mudada, no sentido de não ser revogado o Decreto 7887, que está sendo questionado judicialmente, pois se a oposição conseguisse suspendê-lo, a situação ficaria mais fragilizada.Ele foi obrigado a se curvar a essa Instrução Normativa, para que a manutenção do Decreto não fosse inviável. Mas ele não sabe o que atingiu, ele acha que só o fato de ser mantido ali já é uma vitória. Mas para nós não é, pois são quatrocentos e poucos anos de tortura, de tristeza. O que não quer dizer que vamos fazer uma retaliação. Nós só queremos o nosso direito. Eu acho que se eu estou há 80 anos num lugar, deveria seu automático o reconhecimento.Essa luta é muito árdua, causando estresse e esse estresse se reflete na saúde das comunidades, causando diabete, hipertensão. Já está na hora de alcançarmos um reconhecimento de forma mais tranqüila.


Como foi a consulta às comunidades quilombolas?

Adriano- Alguns diretores da CONAQ estavam em Brasília.e lá eles foram chamados pela AGU para uma reunião para tomar decisões quanto a Instrução Normativa.Eles recusaram, alegando que não havia tempo hábil. O governo tinha pressa e eles propuseram que cada grupo de comunidades, representando uma região enviasse o acordo a que chegaram.As comunidades não concordaram, pois entenderam que separadas teriam menos força e deveriam discutir juntas em Brasília.Elas foram convocadas as pressas.Em Brasília, já existia a Instrução Normativa pronta, foi feita a leitura e os pontos que não concordamos prevaleceram mesmo assim.Foi alegado que a AGU não poderia mudar nada, só o Presidente, que tomaria a decisão final.


O que vocês acham da atuação do judiciário na questão e como os estudantes podem futuramente auxiliar na sua defesa?

Luiz Sacopã – O judiciário é uma instituição que congrega o nepotismo.As brechas só são usadas para a classe dominante. Eu tenho um processo de usucapião há 40 anos. Na 1ª instância eu ganhei.Na 2ª, como na área onde nós moramos, mora um desembargador, o processo foi cair logo na sua mão, e o advogado por sua vez não alegou suspeição. Nós perdemos e em um mês uma imobiliária, que nem conhecíamos, entrou com uma ação de reintegração de posse e o processo correu rapidamente, a ponto de nosso advogado dizer que não tinha o que fazer.Pedimos ajuda ao INCRA e ele conseguiu que ação fosse suspensa.Dentro do processo tem a assinatura de um Procurador do Estado filho daquele desembargador. Então, essa nova garotada, que venha com novas propostas, com honestidade, porque o judiciário hoje é uma gaiola, onde está tudo engendrado. Que eles estejam dispostos a ajudar o lado mais fraco, que não tem esse tráfico de influências que têm os mais fortes.

Adriano – O judiciário seria um ponto de ajuda, mas na prática, assistimos a comunidade Marambaia levar uma goleada de votos a favor da Marinha.Uma senhora nascida e criada na Marambaia, depois de ter seus filhos já adultos foi considerada invasora e proibida de entrar na ilha.Por conta disso ela adoeceu e também foi morar na casa dos filhos.No ano passado a justiça de Angra conseguiu um parecer favorável, mas a Marinha recorreu e ganhou novamente.E esses processos implicam num desgaste, essa mulher por exemplo era chamada a todo momento para testemunhar. Esse ano ela faleceu. Existem, no entanto, casos isolados de vitória. Nós temos um procurador que trabalha com honestidade com as comunidades, nos orientando, o Daniel Sarmento. O que é direito da comunidade é nosso direito, muitas vezes a gente sabe que é nosso, mas ele não chega. Aos jovens, espero que no momento da decisão eles não levem em conta a cor ou a classe social, mas o que é justo. O Brasil assinou a convenção de 160, mas não a respeita. Não respeita o direito dos menos favorecidos, porque o restante impõe que seus direitos sejam respeitados. Essa mudança de atitude. A partir dos jovens pode acelerar um processo de avanço. Hoje, o que há infelizmente, é um incentivo às pessoas saírem das comunidades, e elas chegam na cidade despreparadas para arranjar um emprego.